Valter Hugo Mãe

Rio de Janeiro


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A política tem fodido vezes sem conta o Brasil. Custa ver como a Presidência não tem nada para oferecer ao desalento dos brasileiros. Nada.

Não é estranha a declaração de Bolsonaro dizendo que o povo vivia melhor no tempo de Lula, porque há um abismo entre o Brasil de então e o de hoje, letárgico, aflito. Em mais de vinte anos de viagens consecutivas ao grande país, depois de dois anos e meio ausente pela pandemia, chego ao Rio de Janeiro com a impressão de assistir a um animal perdendo o fôlego, um bicho à sede diante da água belíssima da Guanabara. Nunca vi assim. Com toda a crise, tanta dificuldade, o Rio nunca esteve tão triste, tão vazio, tão lento, tão devoluto, com sua maravilha numa espécie de sem-destino que é uma forma de desperdício e violência. Qualquer coisa moribunda se espalha pelo centrão, pelas marginais do cartão postal, e não consigo imaginar o que vá dentro dos bairros da periferia, a extensa periferia onde a maioria vive.

Sempre foi impressionante como os brasileiros conservam um jeito positivo, mesmo no pior desafio. E julgo que sempre foi a grande lição de resistência. O Brasil cresceu criativo, fulgurante na cultura, pleno de ideias de sobrevivência e estratégias de futuro. O Mundo inteiro aguarda que sua capacidade resulte de uma vez por todas numa ascensão absoluta. O país do século XXI, como foi chamado, tem tudo para ser a mais bem-sucedida receita. Só uma anomalia pode explicar que não o seja, não esteja sendo.

Alguém dizia que ladrão agora está tão desnutrido que não vai ter força para roubar. No pequeno restaurante onde fui comer todas as vezes que pude, um senhor explicava que o empobrecimento era tão acentuado que essas pessoas da rua não podiam mais nada. Você vai ver como dormem o dia inteiro. Ele dizia. Dormem sem comer, magrinhos, quase sem corpo. Não podem roubar mais ninguém e ninguém carrega nada que mereça ser roubado.

Fiquei em Copacabana, lugar que adoro e que envelhece. A quantidade de pessoas de rua é enorme. Por dois fins de tarde me vi a entregar fatias de pizza a quem estava por perto. Um rapaz dizia que dormia ali porque tinha uma aposentada que desenvolveu compaixão por ele e toda a noite descia com um resto de comida. Agradeceu a pizza e pediu que fosse entregar a uma moça uns vinte metros depois. Quando passei de novo por ele, perguntei se ele tinha a certeza de que a senhora desceria ainda. Ele respondeu que haveria de descer, nem que fosse só no dia seguinte.

Fiquei a pensar na minha vizinhança em Portugal. Em como algumas pessoas levam à rua uns restos que deixam para os gatos. Junto da reciclagem existe um recipiente há anos, e as mulheres enchem-no de arroz e batatas cozidas. Os gatos sabem que ali há comida e não deixam de ser da rua. Serão sempre da rua. Normalizados desse modo.

É muito complexa a normalização da miséria. Onde tanta riqueza se produz e se exporta, onde as elites podem tanto, é complicado aceitar que não se alavanque o povo inteiro para dignificação de cada um e estabelecimento da paz e segurança. A política tem fodido vezes sem conta o Brasil. Custa ver como a Presidência não tem nada para oferecer ao desalento dos brasileiros. Nada. Apenas ruído, insulto, ignorância, ameaça, mais empobrecimento.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)