Chama-se transição capilar e, em muitos casos, é mais do que um processo de voltar à forma natural do cabelo. É uma mudança na personalidade. Com diferentes ritmos para cada pessoa. E há etapas descritas como desafiantes.
“Tive uma crise existencial por causa do meu cabelo.” E foi por isso que Gleice Stephane decidiu deixar os cachos naturais voltarem à ribalta. Dito assim, o processo parece ter sido fácil para a jovem de 22 anos, mas desenganemo-nos. Foram mais de sete meses de dúvidas e desagrado com o que via no espelho. Já lá vamos.
Quando olha para trás e pensa o que a levou a não gostar do cabelo natural, Stephane, nascida no Brasil, tem duas respostas já pensadas: não saber tratar dos próprios cachos e os padrões de beleza veiculados, à época, pela sociedade. Revistas, televisão, as próprias pessoas na rua. “Lembro-me de ser criança e ter a sensação de que ninguém usava caracóis. E eu não queria ser diferente.” A acrescentar ao sentimento de exclusão, havia os comentários. “Já viste esse cabelo todo no ar?”; “Não penteaste o cabelo?”, “Prende-o!”.
Por isso, foi ainda na adolescência – “quando me apercebi que havia ‘olhos’ para quem tinha cabelo liso, mas não para mim” – que começou com os alisamentos químicos. Tinha 12 ou 13 anos. Antes, mais criança ainda, lembra-se de ter chegado a utilizar métodos térmicos – pranchas e secadores quentes para alisar os caracóis que tanto detestava.
A influência para o fazer vinha também da família e, em específico, do seu modelo: a irmã mais velha. Também ela utilizava alisamentos químicos e térmicos desde nova e Stephane cresceu a assistir a essa negação do cabelo natural. Mas foi também da irmã que chegou o exemplo para mudar a forma como olhava (e como tratava) os cachos. “Numa época em que ainda não havia redes sociais como hoje, foi ela a primeira pessoa que me falou de transição capilar.”
É uma expressão cada vez mais utilizada e conhecida. Trata-se do processo de abandono de técnicas químicas de alisamento do cabelo, que tem como finalidade deixar que o mesmo regresse à sua curvatura natural. Mesmo que ainda não tenha sido consciente, a transição começa no dia seguinte à última aplicação de produtos químicos de alisamento. Quem o explica é Lorena Fafá, a mulher à frente do Instituto Cachear, localizado em Portugal, na cidade do Porto.
A especialista na área da cosmética e cabeleireiro garante que decidir realizar a transição “é mais do que uma mudança no cabelo, é uma mudança na personalidade”. E, por isso, não é possível uma profissional no salão de beleza “convencer” alguém a fazê-lo. “É um processo de tomada de consciência e, mais do que isso, de aceitação”, sustenta Lorena Fafá, responsável pela rede de cabeleireiros que se expande em África e no Brasil. O Instituto Cachear abriu em terras portuenses o primeiro espaço na Europa há um ano e partiu da experiência que a brasileira teve nas primeiras visitas a Portugal.
As diferentes curvaturas dos cabelos
“Percebi que, por cá, as ‘onduladas’ tratavam o cabelo como se fosse liso, mas seco.” Os cabeleireiros que espreitava em Portugal, conta, não sabiam tratar de ondas, caracóis ou cachos, “optando quase sempre por passar um alisamento térmico, como a prancha”. Sim, ondulados, porque a transição capilar, afirma Lorena Fafá, não se aplica apenas a cachos. Existe uma classificação da curvatura do cabelo, que vai desde o 1A, considerado liso, ao 4C, considerado crespo. Os cabelos ondulados, na escala de 2A a 2C, são também “elegíveis” para esta transição, já que, muitas vezes, as ondas são desconsideradas e constantemente alisadas.
Decidida a trazer “a beleza do cabelo natural” para Portugal, expandiu o negócio. Até porque, resume, o seu objetivo é mais do que comercializar serviços de beleza, “é uma missão educacional”. Hoje, admite, “já se começa a ver uma mudança de mentalidade, com cada vez mais adesão por parte das mulheres em deixar o cabelo natural aparecer e com mais salões especializados nestes cabelos”.
A pandemia e os meses de confinamento, salienta, foram um momento de viragem. Lorena Fafá realça que, “no tempo em que as pessoas ficaram fechadas em casa, não tinham acesso facilitado a alisamentos químicos, nem tinham exposição social e, por isso, muitas começaram a ter os cabelos naturais a aparecer”. Uma transição capilar (quase) forçada, brinca. A juntar a isso, acrescenta, “a sociedade importa-se cada vez mais com as questões de saúde mental e de aceitação das diferenças, incluindo as físicas”.
A cabeleireira acredita que tudo isso foi a combinação perfeita para ter sentido uma mudança na motivação para a transição. “Inicialmente, a esmagadora maioria das mulheres vinha por causa dos danos no cabelo, agora, há muitas que chegam com cabelos perfeitamente saudáveis, mas que querem fazer essa mudança.” Estamos numa fase de aceitação e empoderamento, descreve, “o que é simultaneamente ‘culpa’ e motor para que cachos e caracóis comecem a aparecer em todo o lado – nas redes sociais, na televisão, nas revistas, nas ruas”.
Partilhar a história
Voltemos então a Stephane. Há três anos a viver em Portugal, formou-se na área de cabeleireiro (a emoção de passar pela transição capilar e a vontade de aprender mais sobre cuidado do cabelo foram importantes para a escolha da profissão). Há um ano que trabalha num salão. Gosta de partilhar a sua história com as clientes e há uma em particular que a marcou. “A mulher estava indecisa se fazia a transição capilar ou não e eu contei como foi o meu processo. Fui acompanhando também o dela e foi emotivo o ‘corte final’, em que ela chorou.” De felicidade, sublinha a jovem, pois “tinha acabado de descobrir um novo ‘eu'”.
Stephane recorda então como foi o seu processo de mudança, revelando que não chorou, mas que o final, quando se viu com os cachos definidos, “foi libertador”. Como já referido, o processo da brasileira demorou mais de sete meses. Primeiro, diz, fez “tudo errado”. Utilizava métodos térmicos para disfarçar a diferença de curvatura no cabelo. Não tinha acompanhamento profissional. Usava “um bolo caseiro” (uma mistura de produtos naturais) para tratar o cabelo.
Apesar de todos esses erros técnicos, o maior de todos, destaca, foi comparar-se a outros processos. “Cada pessoa tem um crescimento de cabelo diferente e o meu é bastante lento. Quando me comparava aos outros ficava desanimada.” Mas, ao contrário do que muitas vezes acontece, não pensou em desistir, não porque estivesse a ser fácil, mas porque o resultado dos alisamentos também já não lhe agradava.
“O meu cabelo começou a ficar muito fraco e a cair. Tinha a certeza que ia ficar careca.” Por isso, enfrentou os sete meses de cabelo “dividido” – metade do cabelo liso e a outra metade com cachos pouco definidos. Decidiu dar “o corte radical” para disfarçar, mas a situação não melhorou, pois estranhava ver-se com um cabelo tão curto.
Lorena Fafá, dona do Instituto Cachear, acentua algo referido pela jovem Stephane: acompanhamento profissional. “É essencial visitar um salão especializado em cabelos cacheados várias vezes durante o processo, para garantir a lavagem, nutrição e hidratação corretas.” Para quantificar, refere que o cabelo deve ser cuidado, idealmente, duas vezes por semana. Alisamentos térmicos estão proibidos e é essencial utilizar um produto “leave-in” (ou seja, que é mantido a atuar no cabelo sem ser enxaguado a seguir).
Caso a caso
Quanto a metas, Lorena afirma sempre que cada cabelo é um cabelo. “Há transições que podem durar mais de um ano.” E, alerta, há cabelos que nunca voltam à curvatura original, uma vez que “os consecutivos alisamentos térmicos e químicos podem levar ao alisamento definitivo, em que o cabelo não volta a encaracolar, ficando sem forma”. Os piores casos a que a especialista já assistiu foram de “cortes químicos”, ou seja, cabelos que quebraram e ficaram cortados devido ao excesso de produto de alisamento químico, e de queimaduras no couro cabeludo. “O alisamento químico em si não é o inimigo, não quero diabolizá-lo, mas este deve ser feito com conhecimento e contenção e sempre por um especialista”, comenta Lorena Fafá.
O “grande corte”, como Stephane fez, não é obrigatório, refere a responsável do Instituto Cachear. “Há pessoas que aguentam mais tempo a diferença de curvatura no cabelo e preferem não ter um corte radical.” Durante esses meses, para disfarçar, Lorena recomenda a visita a um salão especializado. “Com os produtos e as técnicas certas, sabemos como disfarçar o liso que fica nas pontas.” Criam-se caracóis “falseados”, detalha, para que o processo de transição seja menos doloroso. A transição do cabelo alisado para o cabelo natural é dada por terminada quando já não há quaisquer pontas lisas.
Apesar de Gleice Stephane admitir que foi um processo associado à dor e à baixa autoestima – como o comprova o facto de não ter uma única fotografia sua que retrate esses sete meses -, a jovem garante que o final é compensador. “Hoje sinto-me eu, sinto-me livre e sinto-me bonita. Tenho muito orgulho nos meus cachos e em saber cuidar deles.”