Quando os pais não gostam dos namorados dos filhos

Há várias formas de comunicar, maneiras de dizer o que vai na alma, o que se pensa, sobretudo quando o assunto é delicado e envolve paixão e amor

Embirrações sem sentido, aquele medo do ninho vazio, uma preocupação natural, um torcer de nariz fundamentado. O que é, afinal, este desagrado no amor? Que causas e que motivos podem pôr uma família zangada e em lágrimas?

neA maneira de vestir. Aquelas calças com a cintura quase nos joelhos, as camisolas amarrotadas, aquela minissaia muito minissaia e aqueles tops demasiado tops com a barriga à mostra. A idade. Demasiado nova, demasiado velho. Imaturidade a mais, experiência a mais. Fuma? Bebe? Sai muito à noite? Com os amigos? Com as amigas? A conversa, a educação, a forma de estar e de se apresentar. De onde vem? Para onde quer ir? Quem é a sua família? É de confiança? O que quer, afinal? Aqui tudo importa. O que se vê e o que não se vê. O que se sabe e o que não se sabe, certezas e suspeitas. Por que razão os pais torcem o nariz ao namorado da filha ou à namorada do filho? Há justificações para uma pergunta complexa. Respostas para o que pode bater à porta de qualquer família.

Rute Agulhas, psicóloga clínica, psicoterapeuta, terapeuta familiar, começa pela questão geracional para enquadrar modos de estar e de pensar. “Pais e filhos pertencem a gerações diferentes e têm vivências diferentes, o que os faz, naturalmente, valorizar coisas diferentes. Pensam, sentem e agem de forma diferente, o que é expectável.” Certíssimo. “Neste contexto, é também muito provável que os pais não gostem dos(as) namorados(as) dos filhos(as).” Certo.

Importa escavar mais fundo e perceber o que está em causa, o que é explícito e implícito, o que está mais à tona ou na profundidade. Até porque, realça Rute Agulhas, “esse não gostar pode relacionar-se com numerosas situações, desde a idade ou modo de vestir, os hábitos e comportamentos ou a família de origem, passando ainda pelos sonhos e projetos ou pela forma como interage naquela relação afetiva.” Há vários fatores em jogo.

As escolhas de uma filha e de um filho numa relação amorosa não passam ao lado dos pais. Seja na concordância, seja na discordância. Quando se aceita, tudo bem, não se implica, não se embirra. Quando assim não é, tudo muda de figura. Para Margarida Crujo, pedopsiquiatra, é essencial perceber as causas deste desagrado que abana a estrutura familiar. As explicações têm diversos níveis, caminhos feitos ou por fazer. “Há vezes em que a relação entre pais/filhos não assenta em moldes saudáveis, e o descontentamento perante uma escolha específica dos filhos é habitual: os pais não apreciam a roupa que os filhos escolhem ou o estilo que apresentam, não apreciam as amizades, e também não apreciam os namorados(as)”, refere. Trata-se, portanto, de uma continuidade do que habitualmente acontece na dinâmica familiar. E uma coisa leva a outra.

“Há outras vezes em que a ligação pais/filhos é de grande proximidade, eventualmente excessiva, e surgir um namorado ou namorada pode provocar nos pais a sensação de estarem a ‘perder’ os filhos”, observa Margarida Crujo. “Ao mesmo tempo, pode traduzir a confrontação com a ideia de o filho(a) estar crescido, o que pode ser aceite com dificuldade em determinadas famílias”, sublinha a pedopsiquiatra.

Bater as asas, perda ou ameaça

Os filhos crescem, ganham autonomia, o amor desponta e acontece, o namoro começa. Os pais ficam com o coração nas mãos por tudo e mais alguma coisa. E a saída de casa aproxima-se. “Sim, pode ser um sinal de angústia perante o processo de crescimento do filho e perante um ninho familiar que se antecipa vazio”, comenta Rute Agulhas. “A entrada dos filhos na adolescência é uma etapa do ciclo familiar que exige algumas tarefas de desenvolvimento, nomeadamente uma maior abertura ao exterior e a renegociação de regras e de limites”, indica a psicóloga clínica. Quando isso não acontece, a vida complica-se, não se operacionalizam tarefas, o modelo de funcionamento familiar pode mesmo tornar-se disfuncional. Não se comunica e ninguém se entende.

Margarida Crujo acrescenta mais uma possibilidade. “Pode acontecer ainda que pais e filhos tenham uma relação saudável, mas existirem, ainda assim, particularidades específicas no namorado(a) que não deixem os pais satisfeitos. Portanto, perceber a causa é importante, principalmente porque a escolha dos filhos tem de ser respeitada.” E há o óbvio, mesmo que não se queira ver. “Nenhum pai e nenhuma mãe podem viver a vida pelos filhos”, sustenta a pedopsiquiatra.

O torcer de nariz às escolhas amorosas dos filhos até pode parecer inevitável por vários medos e diversas explicações. Mas, seja como for, os pais têm de refletir sobre os motivos associados a esse não gostar. Há matérias a deslindar. Por exemplo, aponta Rute Agulhas, em que medida esse não gostar “se relaciona com aspetos centrais que podem ter um real impacto na vida e bem-estar do seu filho.” O(a) namorado(a) consome drogas, não estuda, nem trabalha, exibe comportamentos desviantes, é tóxico na relação. São aspetos pertinentes. Ou então são outras coisas menos densas. “Ou, pelo contrário, se aquilo que os pais sentem se relaciona com aspetos mais secundários e menos impactantes na vida do seu filho?”, questiona Rute Agulhas. Como a forma de vestir, o penteado que usa, a música que ouve, os livros que lê. “É fundamental que os pais façam este exercício de reflexão antes de manifestar de forma mais clara aquilo que pensam e sentem”, alerta. Pensar antes, extravasar depois.

Há um misto de sensações, na verdade. Lidar com o desconhecido, proteger as crias, amaciar o futuro. Há tanta coisa que passa pela cabeça de quem cuida e educa. O problema é quando se olha para esses acontecimentos, para relações que acontecem naturalmente, na perspetiva de uma perda ou de uma ameaça. Rute Agulhas toca nesse ponto. “Como se o papel parental se esvaziasse e os pais se sentissem perdidos, sem rumo e sem um foco. Ameaçados pelo que vem do exterior.” Há ainda outro ponto crucial que, muitas vezes, passa despercebido. “Não podemos esquecer também que muitos pais se anulam enquanto pessoas ou casal, passando a viver apenas em função dos filhos. Quando estes crescem e tentam ‘bater as asas’, é natural que sejam ativadas emoções mais desagradáveis e que tudo ou todos os que são associados a esta situação sejam encarados de modo negativo”, diz a psicóloga clínica. Por isso, destaca, é importante que “os pais não se anulem enquanto indivíduos, cônjuges ou profissionais, e que consigam integrar estes vários papéis com o desempenho do papel parental.”

O que fazer então quando não se gosta mesmo do namorado da filha ou da namorada do filho? “O diálogo sereno, com escuta atenta das várias opiniões, parece-me a única maneira de gerir desagrados e eventuais conflitos consequentes”, responde Margarida Crujo.

Entrar e tentar experimentar outra pele. “Tentarmo-nos colocar na posição do outro (progenitor ou filho), respeitá-la e deixar uma porta aberta para a comunicação, o que é essencial para uma possível atualização de opiniões: por assumirmos uma postura em determinado momento, não quer dizer que tal não se modifique ao longo do tempo.” As opiniões também mudam, sim, hoje pode ser assim, amanhã pode ser diferente. “O mesmo é dizer: não aceitarmos a posição dos nossos pais não significa que não lhes demos razão mais tarde, e não gostarmos dos namorados(as) dos nossos filhos(as) também não impede que venhamos a gostar deles”, afirma a pedopsiquiatra.

Filhos vs. filhas, a possibilidade de uma gravidez

Há várias formas de comunicar, maneiras de dizer o que vai na alma, o que se pensa, sobretudo quando o assunto é delicado e envolve paixão e amor. Como evitar discussões e lágrimas, amuos e desatinos? Como evitar, no limite, um corte de relações? “Antes de mais, os pais devem realizar um exercício de reflexão, que lhes permita avaliar os reais motivos que os levam a sentir este desagrado. Depois, devem tentar comunicar aquilo que pensam e sentem de uma forma assertiva, sem acusações, críticas destrutivas ou proibições que, no limite, geram sentimentos de zanga e de revolta, podendo mesmo revelar-se contraproducentes”, sugere Rute Agulhas que recorda um velho ditado: “Lembremo-nos de que o fruto proibido é sempre o mais apetecido”.

Os pais são mais velhos, têm outra maturidade e experiência de vida, querem o melhor para os filhos. Uma outra pessoa na família é sempre uma outra pessoa na família. A partilha é essencial. O que se pensa, o que se sente, desejos e preferências. Partilhar e ouvir também. “Dar espaço ao filho para que se pronuncie, escutando-o. Um processo de comunicação claro e funcional é fundamental para que esta situação possa ser gerida de modo adequado”, aconselha Rute Agulhas.

E quando há motivos óbvios e evidentes para tamanho desagrado, quando há argumentos de peso, e não se quer desestabilizar a relação familiar, os pais têm de abordar o assunto de forma clara e direta. Sem esquecer o dever de ajudar e proteger os filhos, fazendo-os pensar sobre diversos assuntos. “Em algumas situações geram-se conflitos entre pais e filhos, é verdade. Mas não fazem parte da vida? O que torna uma família funcional ou disfuncional não é a presença ou a ausência de conflitos, mas sim a forma como estes se abordam e resolvem”, avisa Rute Agulhas.

O desacordo com os namoros tem outras camadas. Haverá preocupações diferentes em relação aos filhos e às filhas? Haverá formas distintas de gerir esta questão para uma mãe e para um pai?

“Em muitas famílias, ainda se assiste a uma forma muito estereotipada de educar os filhos – os rapazes são educados para serem mais autónomos e com direito a maior liberdade, versus as raparigas, que são educadas para serem mais caseiras e recatadas, com menor liberdade”, repara Rute Agulhas.

A possibilidade de uma gravidez na adolescência pode explicar as diferenças de trato, o grau de preocupações. “Em muitas famílias, a possibilidade de uma gravidez na adolescência da filha ainda é sentida com enorme receio, conduzindo a comportamentos mais castradores. Esquecem-se estes pais que os filhos rapazes também podem ser pais durante a sua adolescência”, frisa Rute Agulhas. Os estereótipos associados ao género ainda subsistem em muitas famílias e condicionam a forma como os pais olham para os filhos e respetivos namorados e namoradas.

Margarida Crujo aborda também a questão da gravidez. “Talvez exista uma tendência para uma maior proteção das filhas, pela ideia ainda arreigada na nossa sociedade de que ‘as meninas podem engravidar’. Em boa verdade, havendo uma gravidez não planeada na adolescência, não há apenas um interveniente único.” Em seu entender, há evolução e a diferenciação de comportamentos dos pais em relação aos filhos está cada vez menos dependente do seu género. “Dependerá mais da personalidade de cada um e da dinâmica relacional dos intervenientes”, sublinha a pedopsiquiatra. Até porque cada família é uma família. E o amor é sempre amor.