Quando o sutiã também ajuda a ganhar troféus

A roupa parece a última preocupação de qualquer atleta. Mas o sutiã, as cuecas ou os calções certos - ou errados - podem ter impacto na possibilidade de contrair lesões e na autoestima, mas também na performance. O vestuário personalizado da seleção feminina de futebol de Inglaterra, que recentemente conquistou o Europeu, despertou consciências. Mas há ainda um longo caminho a percorrer.

Camisola em riste, sutiã da marca Nike à mostra e uma corrida desenfreada pelo campo. A imagem protagonizada pela jogadora britânica Chleo Kelly na final do Euro 2022 frente à Alemanha ficou célebre pelo ato invulgar no futebol feminino. Mas também pelo “segredo” que as jogadoras “levavam ao peito”. Nos media do Reino Unido repetiram-se os títulos: “Como é que os sutiãs desportivos ajudaram as Lionesses a conquistar o Euro 2022?”. A resposta é simples e recai sobre a importância de o equipamento desportivo ser mais do que uma questão estética, mas também uma questão de performance e resultado.

“O equipamento feminino ainda é pouco considerado no futebol.” “Como o ténis é um desporto exigente, uma roupa adaptada a mim seria fundamental para aumentar o conforto, diminuir irritações e ter menos suor acumulado.” “Na natação em águas abertas, apesar de ser usado o fato quase completo, as medidas são standard e não têm em conta as diferenças no corpo de cada um.” Como mostram Dolores Silva, Francisca Jorge e Angélica André, respetivamente, apesar de o equipamento personalizado – ou, no mínimo, pensado para o corpo feminino, considerando as suas particularidades – ser apontado por diversas atletas de várias modalidades como uma mais-valia, esta ainda é uma realidade distante.

É sabido que o desporto masculino, desde o futebol ao ténis, é aquele que move mais dinheiro. Por essa razão, é também o que recebe mais atenção por parte de investigadores e empresas tecnológicas. Assim, as inovações acabam por se concentrar nos atletas masculinos. Para as mulheres, na maioria dos casos, sobra uma mimetização.

Para Angélica André, os fatos de competição em águas abertas não têm em conta os diferentes corpos
(Foto: Fábio Poço/Global Imagens)

É o caso de Dolores Silva. No clube onde joga atualmente, o Sporting Clube de Braga, o equipamento distribuído pelas atletas é o masculino. Tanto a roupa de treino como a de competição. Como consequência, a número 14 do clube minhoto vê-se obrigada a trabalhar com camisolas demasiado largas ou calções que não assentam, “de maneira nenhuma”, nas formas femininas.

“Eu joguei lá fora e, particularmente na Alemanha, já há outra consciência”, relata. Nas equipas estrangeiras que representou, o Atlético de Madrid, o FCR Duisburg, o MSV Duisburg e o FF USV Jena, Dolores Silva, de 31 anos, relembra que os equipamentos eram sempre de corte feminino. As camisolas assentavam melhor. Os calções serviam na perfeição. “Claro que se fosse algo personalizado poderia ser ainda melhor, mas já ficaria contente se todos os clubes percebessem que as roupas com desenho feminino são uma mais-valia para nós, tanto a nível físico como psicológico.”

Sim, psicológico, reitera. Porque, apesar de a estética parecer um assunto de futilidade no desporto, a futebolista reforça que sentir-se bem com o seu corpo e com a sua imagem – “ainda por cima numa época em que nas redes sociais proliferam imagens nossas” – é “meio caminho” para só se preocupar com o objetivo de vencer.

No clube onde joga, Dolores Silva tem de utilizar o equipamento masculino
(Foto: António Cotrim/Lusa)

Felizmente, diz Dolores Silva, a seleção portuguesa de futebol feminino, na qual é atualmente capitã, começou, há meia dúzia de anos, a aceder à mesma preocupação de muitos clubes estrangeiros. O dia a dia das jogadoras é cumprido com equipamentos femininos. No entanto, a equipa das quinas ainda não deu o passo seguinte, e que a congénere inglesa já alcançou, com reconhecido sucesso.

Uma questão de suporte

Mas, afinal, como é que os sutiãs desportivos foram uma das chaves do sucesso da equipa britânica? A resposta é a tecnologia biomecânica. Joanna Wakefield-Scurr é investigadora na Universidade de Portsmouth e intitula-se como especialista na “biomecânica dos seios”. O seu currículo de estudo sobre os movimentos do peito feminino e como este pode e deve ser suportado chegou, recentemente, a resultados concretos no futebol.

Em conjunto com o Instituto Britânico do Desporto, equipou as futebolistas da seleção com sutiãs desportivos personalizados, que tinham em conta a forma, peso e movimento específicos de cada peito. No final, foi descrito que o novo equipamento proporcionou maior conforto e melhorou a performance das jogadoras, com a diminuição de dores durante a corrida ou toques e com maior liberdade de movimentos. Na verdade, um sutiã com pouco suporte para o peito chegava a ser responsável por cortar a passada das atletas em até quatro centímetros – uma distância mais do que significativa no desporto de alta competição.

O mesmo estudo tinha sido já colocado em prática com as atletas olímpicas e paralímpicas britânicas nos Jogos de Tóquio, em 2020, e os resultados foram semelhantes. Antes disso, num inquérito realizado a um total de 70 atletas de elite, concluiu-se que 26% relatavam que as dores sentidas nos seios afetavam a performance que obtinham.

Hugo Pombo, fisiologista do exercício, olha com otimismo para a indústria da tecnologia têxtil. “Os resultados mundiais e olímpicos são muitas vezes superados por pequenos detalhes, e os equipamentos desportivos em muito têm contribuído para essa diferenciação e potenciação da vitória.” Em particular, o sutiã, “que protege uma área mais sensível da mulher”, e que tem sido uma aposta das grandes marcas desportivas.

“Tem havido uma evolução dos materiais e especificações para cada modalidade, e isso tem levado ao aumento do rendimento e performance das atletas”, garante o profissional de saúde desportiva. E o aprimorar da performance não é o único benefício que Hugo Pombo aponta, já que a utilização do equipamento “ajustado e adequado” a cada desportista diminui o risco de lesões como arranhões ou abrasões.

Sara Moreira, atleta de 36 anos, comprova a inovação referida com a própria experiência. “Sou patrocinada pela mesma marca desde 2007 e ao longo dos anos tenho-me apercebido da evolução dos sutiãs.” Agora, sublinha, são raros os momentos em que tem problemas com assaduras e abrasões, que aconteciam nos primeiros anos em que competiu, apesar de o atletismo ser uma modalidade fisicamente exigente. “Sinto que consigo ter o equipamento perfeitamente ajustado a mim e que me dá o tamanho de costas e o suporte de copa ideal”, o que, assegura, não acontecia há dez anos.

Para Sara Moreira, esta peça tem evoluído em termos tecnológicos ao longo dos anos
(Foto: Fábio Poço/Global Imagens)

Em entrevista ao site britânico Huffpost, a investigadora britânica Joanna Wakefield-Scurr salientou duas conclusões da análise às futebolistas da seleção inglesa. A primeira é a de que “muitas das jogadoras nunca tiveram um sutiã profissional ajustado ou um aconselhamento técnico sobre qual o sutiã desportivo mais indicado para si”. E, em segundo, que a maioria optava por sistemas de compressão, que apertam o peito, nunca tendo percebido os benefícios para o seu conforto e performance de um sutiã de suporte.

Dolores Silva já tem essa consciência e opta por sutiãs desportivos que dão suporte e que não “espalmam” o peito, já que não gosta de se sentir “apertada”. Confessa que uma roupa interior feita à sua medida seria um “sonho de conforto”, especialmente para evitar certas abrasões provocadas por algumas etiquetas e costuras. “Acho muito interessante que haja iniciativas que investem na roupa feminina, que é quase sempre negligenciada.”

À procura de investimento

Graça Guedes, investigadora no departamento de Engenharia Têxtil da Universidade do Minho e especializada em design inclusivo, corrobora a ideia de que o vestuário feminino tem sido, por diversas vezes, “posto de lado”. “Só se investe naquilo que se sabe que dará retorno financeiro, e a roupa feminina desportiva ainda não entra nessas contas.” Para a designer de moda, a investigação sobre sutiãs é fundamental porque a diversidade de formas, tamanhos e estruturas do peito é tanta e tão frequente que é “impossível” cingir-se aos tamanhos padrão que as marcas apresentam atualmente.

Francisca Jorge gosta do equipamento utilizado nas suas modalidades, mas acredita que há margem para evolução
(Foto: Fábio Poço/Global Imagens)

E o futebol não é caso único. A tenista Francisca Jorge, de 22 anos, relata uma experiência semelhante à de Dolores Silva, ainda que, frisa, “o ténis seja um mundo mais facilitado nesse aspeto”. Por mover mais dinheiro do que o futebol nas competições femininas e por ser um desporto individual, a busca pelo equipamento “quase perfeito” é mais fácil. Da mesma opinião partilha a atleta Dulce Félix, de 39 anos, que coloca o atletismo num patamar equilibrado entre homens e mulheres no que toca ao desenvolvimento do vestuário. “No atletismo, encontrar a roupa certa é mais fácil, porque já temos um modelo que está provado funcionar para o melhor rendimento.”

Dulce Félix compara a importância do sutiã e dos calções com a das sapatilhas. “Nos últimos anos falou-se muito do papel do calçado para alcançar os recordes e acho que a roupa também é um fator a considerar.” Porque, argumenta a atleta olímpica, sentir-se confortável é uma vantagem para estar focada nos objetivos. Em resumo, Dulce Félix acredita que os resultados que um desportista alcança são fruto da soma da boa preparação física com bom material.

Dulce Félix
(Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

A tenista Francisca Jorge, atualmente no lugar 308 do ranking mundial WTA (Women’s Tennis Association), a portuguesa melhor classificada, afina pelo mesmo diapasão quanto à importância da roupa ser aproximada à do calçado. A escolha entre calção ou saia, mais apertado ou mais largo e de determinado material, exemplifica, influencia a performance no court, seja por oferecer maior liberdade de movimentos, por gosto pessoal, por estética ou por absorção do suor. O peso da roupa é, aliás, apontado como um dos fatores-chave a considerar.

Segundo Graça Guedes, o algodão tem vindo a ser classificado como um “mau” material têxtil, especialmente no campo desportivo, tanto pela sua produção ecologicamente exigente como pela performance do produto. A investigadora da Universidade do Minho realça uma das suas pesquisas mais recentes: os têxteis feitos a partir de cânhamo. E que, considera, podem ser o próximo passo revolucionário na indústria dos equipamentos desportivos, garantindo uma produção mais amiga do ambiente, maior conforto para o utilizador e uma melhor expulsão do suor.

Chloe Kelly celebra o golo da vitória no Euro 2022 e exibe o sutiã personalizado
(Foto: Franck Fife/AFP)

A natação é também um caso a considerar quando se fala de vestuário personalizado. Daniel Viegas, treinador da Federação Portuguesa de Natação, refere o caso específico da sua especialidade – águas abertas -, que apresenta dois tipos de fato para competição: o normal e o isotérmico. “Nas primeiras utilizações do fato isotérmico é normal os nadadores e as nadadoras saírem da água com o pescoço em ferida.” Nada que um creme hidratante não resolva, diz, mas o fato poderia ser pensado para minimizar a fricção nessa área. Quanto ao peito, Angélica André, nadadora que conquistou recentemente o bronze nos Europeus, confessa que, com algumas tentativas, vai conseguindo encontrar o fato de banho de treino perfeito.

Já quanto ao fato de competição, a história é outra. “O isotérmico é bastante justo ao corpo”, mas o normal, que tem a mesma estrutura para homens e mulheres, diferenciando apenas nas curvas da cintura e peito, não traz o mesmo conforto. “Para mim, as alças ficam largas, o que faz com que tenha de fazer um esforço acrescido nos braços, aumentando o cansaço no final.” Num futuro idílico, a atleta, de 27 anos, gostaria de competir com fatos personalizados ao tamanho e à forma de cada parte do corpo, pois, reforça, “seria uma maneira de aumentar a performance”.

Graça Guedes, investigadora em engenharia têxtil e designer de moda, sublinha que se há uma parte do corpo anatomicamente diferente na mulher, o peito, e se esta é uma área considerada sensível, tem de ter a atenção dos fabricantes. “Porque o sutiã faz a diferença e pode ser o detalhe que falta para levar à vitória.” Como provou Chloe Kelly e a sua seleção.