Quando o corpo dos animais falha, há uma segunda vida

Sadie foi resgatado em 2016 pela associação onde Susana Vidal faz voluntariado. Seguiram-se operações, tratamentos e a cadeira de rodas

A história de Susana Vidal e Sadie, um animal resgatado da berma de estrada, não é uma exceção. A eutanásia é cada vez menos uma opção quando cães ou gatos sofrem da condição de paraplegia, por acidente ou doença.

Os dias de Sadie são passados entre casa, fisioterapia e piscina. Por vezes, a sessão de exercício aquático é especial. É a dona, Susana Vidal, a fazer o acompanhamento. No Hospital Veterinário Mais Animais, na Maia, é possível alugar a piscina para tratamento animal. Um serviço raro em Portugal, lamenta Susana, obrigada a deslocar-se de Braga para conseguir dar qualidade de vida ao companheiro de quatro patas. Entre choro e mimo, começa a sessão. “Dá tudo, Sadie!”, encoraja a dona. Apesar de ser uma rotina com três anos, as sessões de fisioterapia ainda não fizeram Sadie gostar de água.

A história do cão rafeiro de pelo castanho e atitude amistosa cruza-se com a de Susana Vidal em 2016. O animal foi encontrado paralisado na beira da estrada pela Associação para a Defesa dos Animais e Ambiente de Vila Verde, onde Susana faz voluntariado. Sobre a vida de Sadie antes do encontro, nada se sabe. “Pensamos que poderá ter sido maltratado, devido ao tipo de lesões que apresentava e também pela reação de grande medo quando vê vassouras.”

O objetivo de Susana Vidal e do marido, Ulisses Pimentel, seria acolher o pequeno cão durante duas semanas, o tempo de confirmar a resposta à reabilitação. “Depois de estar com ele 15 dias ou um mês a trabalhar, era impossível eutanasiá-lo ou devolvê-lo à associação.” E foi assim que Sadie foi ficando na casa que já é de muitos outros animais, com histórias de vida igualmente trágicas. Atualmente, a família acolhe cinco cães e dois gatos. Um dos animais ficou ferido num ataque de cães, uma cadela levou um tiro, outro estava no canil e fugia para pedir mimo e a última entrada foi de um patudo abandonado no monte. “Dão-se todos bem, mas o Sadie não é o mais simpático. Resmunga muito com os gatos.”

Fisioterapia, acupuntura e laser

A Cerca, associação com duas décadas de existência, foca-se na recolha de acidentados. Como dispõe de ambulância especializada no transporte de animais, acaba por acolher muitos casos de paraplegia. Dos 300 a 400 que recebe anualmente, mais de dez foram operados, ao longo de 20 anos, quatro precisaram de cadeira de rodas. Despesas, explica a presidente Raquel Teixeira, difíceis de sustentar.

Além da paraplegia devido a traumatismos, como a de Sadie e da maioria dos animais a cargo da associação A Cerca, há outras causas. Há casos neurológicos – derivados de hérnias, processos degenerativos ou até doenças autoimunes – ou ortopédicos. Certas raças têm uma predisposição maior para desenvolver este tipo de complicações, salienta Cátia Mota Sá.

As sessões de fisioterapia na piscina têm como objetivo estimular a marcha reflexiva e prevenir que os músculos de Sadie atrofiem

A veterinária especialista em reabilitação animal conta que o tratamento evoluiu de forma considerável nos últimos 15 anos, à boleia do avanço nas técnicas de diagnóstico. “Com maior disponibilidade de recursos para obter imagens avançadas, é possível ter melhor visão sobre as lesões, o que permite estabelecer um diagnóstico mais fidedigno e, consequentemente, uma terapêutica mais adequada.” Os avanços no tratamento poderão ser associados, adianta Cátia Mota Sá, à diminuição da eutanásia em situações de paraplegia.

Depois do diagnóstico, são várias as possibilidades. “O alívio da dor é o objetivo primário, porque, havendo dor, não é possível restabelecer a marcha”, especifica a especialista em reabilitação veterinária. Eletroestimulação, acupuntura, técnicas de cicatrização e exercício ativos são algumas das técnicas mais utilizadas na terapêutica de animais paraplégicos, quer sejam casos traumáticos, neurológicos ou ortopédicos.

Susana Vidal já tentou um pouco de tudo para o companheiro Sadie. Desde que foi encontrado, há cinco anos, além da fisioterapia, já passou por tratamentos de laser, de acupuntura e até células estaminais. A primeira recuperação trouxe esperança e Sadie voltou a andar, mas deslocou o osso da anca e teve de ser submetido a uma cirurgia sem sucesso, que exigiu uma segunda intervenção. Nunca mais andou. Susana Vidal faz as contas. “É o cão mais caro da associação, no total já lá vão quatro mil euros”, pagos, em parte, com ajuda de amigos e de iniciativas de angariação de fundos.

Objetivo: voltar a andar

Segundo Cátia Mota Sá, nos casos de animais parésicos, em que a marcha está alterada mas é consciente, a função motora pode ser recuperada numa semana. “Nos casos mais graves, após o primeiro mês sem resultados, é difícil que venha a recuperar, e passa a candidato para a marcha reflexa, ou seja, uma marcha funcional, mas não consciente.” Os animais aprendem o movimento que é necessário fazer para andar, por força de repetição de exercícios, mas o cérebro não tem consciência do ato de marcha. A situação é semelhante no caso de gatos. Pode demorar cerca de um ano a alcançar.

É o caso de Sadie. Em tratamentos variados há cinco anos, o objetivo atual do animal de estimação de Susana Vidal é aprender a marcha funcional, apesar de “ser difícil, porque ele é muito preguiçoso”. A fisioterapia que pratica atualmente serve também como manutenção, é “uma forma de não atrofiar os músculos”. Entretanto, Sadie e a cadeira de rodas são inseparáveis para os passeios. Mas a dona alerta que não pode ser utilizada durante longos períodos de tempo, com risco de causar ferimentos ou acidentes.

Raquel Teixeira, presidente d’ A Cerca, afirma que ter um animal paraplégico numa associação “é impossível”. A exigência de cuidado e higiene é demasiada para instituições que estão, por norma, sobrelotadas. E ter a esperança de resgatar os amigos de quatro patas do canil parece ainda mais difícil. “É muito complicado em Portugal encontrar quem adote estes animais, porque as pessoas não querem cães que precisem de ajuda para limpeza, para tirar e pôr na cadeira ou para fazer as necessidades, como urina ou fezes”, esclarece Raquel Teixeira. A Cerca trabalha com adoções no estrangeiro e, por isso, nota a presidente, há diferença nos interessados. “Aí são os primeiros a ser adotados.” Por ter contacto com associações fora de Portugal, através das quais arranjam donos para os animais encontrados, a eutanásia não é uma solução ponderada.

Ter um animal de companhia paraplégico exige, além de disponibilidade financeira, tempo e dedicação. Para Susana Vidal, “tudo se faz”, mas admite que é um fardo. “Se demoro mais, se não estou em casa, se tenho um imprevisto, fico stressada, porque estou preocupada com ele.” Garante que é uma questão de hábito. Mesmo com a rotina aprendida, podem surgir complicações e, no caso de Susana Vidal, foi a saúde. Por pegar num animal com quase 20 quilogramas, ganhou uma hérnia. Ainda assim, mostra-se otimista. “Agora venho fazer-lhe a fisioterapia na piscina e é uma ajuda também para as minhas costas”, realça, sorridente, entre exercícios com o Sadie.

Apesar de não haver números centralizados, Cátia Mota Sá acredita que a eutanásia é, atualmente, uma opção equacionada apenas em casos extremos. “Porque o prognóstico é muito mau ou é um animal idoso com muitas patologias”, elucida a veterinária. Uma opção que Susana Vidal não pondera, embora compreenda quem tenha necessidade de o fazer. “Duas semanas de terapia podem chegar aos 400 euros e há pessoas que não têm possibilidades.”

Sadie teve a sorte de ser encontrado por uma associação que o acolheu e de ficar numa casa onde não lhe faltam cuidados e carinho. Susana não perde a esperança e não desiste de o ajudar. A fisioterapia vai continuar nos 12 metros da piscina, ora para um lado ora para o outro. “Ele é feliz com esta vida”, diz Susana. “E isso é uma lição.”