Quando a infertilidade atinge os homens

Ricardo Soares e a mulher, que se debateram com um problema de infertilidade durante cinco anos, concretizaram o sonho de serem pais em 2018 através de tratamentos de PMA

O preconceito ainda mora num tema que vive na sombra e poucos sabem que em metade dos casais inférteis existe um contributo do fator masculino. Estudar bem os dois elementos do casal é prioritário. Há situações tratáveis, outras em que a procriação medicamente assistida é o caminho.

Quando Ricardo Soares casou, já lá vai uma década, os planos estavam alinhados: ter filhos era o maior de todos. Só que o projeto de vida quase foi por água abaixo quando, ao fim de um ano de tentativas para engravidar, a infertilidade lhe bateu à porta. Sim, a ele. Era 27 de dezembro de 2013, estava a comemorar 30 anos, e uma carta foi o murro no estômago. “Começámos a equacionar que podia existir algum problema. No final desse ano, decidi por iniciativa própria fazer um espermograma, longe de imaginar o resultado. Abri aquele envelope e percebi.” O diagnóstico ainda era só uma nuvem cinzenta, um nome difícil de pronunciar: oligoteratozoospermia.

“Significa que há uma baixa contagem de espermatozoides e, além de serem poucos, o número desses com anormalidades era grande. Na altura, pensei que seria algo resolúvel com alguma terapêutica”, relata. Uma carta para o Centro Materno Infantil do Norte (CMIN) e uma espera longa, muito longa. Que lhe deu tempo para testar terapias alternativas, produtos naturais, começar a praticar desporto. “Achava que mudar o estilo de vida podia mudar o resultado, que isto era transitório. Havia alguma inocência, ignorância.” Porque ninguém “está formatado para que os seus projetos de vida sejam assim esquartejados”.

Ao fim de quase um ano, a resposta do CMIN chegou. Uma consulta para Ricardo Soares e Carla Dias, a mulher, ambos enfermeiros, um rol de exames e a confirmação da infertilidade masculina, que nem as consultas com um urologista permitiram perceber a causa. E abria-se a porta ao mundo da procriação medicamente assistida (PMA), qual furacão carregado de dor. A injeção intracitoplasmática, o procedimento em que um único espermatozoide é injetado diretamente num óvulo, era a única forma de conseguirem engravidar. Foi o início de um caminho “que seria muito mais longo, difícil e penoso” do que estavam à espera. “A taxa de sucesso nem chega aos 30%, as pessoas não têm esta noção.”

A cada consulta, a cada ciclo de tratamento falhado, a desesperança, vivida num silêncio de luto. A par dos comentários, duros de ouvir, de amigos e família – só um círculo restrito sabia – que lhe pediam filhos. Ricardo, hoje com 37 anos, nunca sentiu o peso da culpa, nem o complexo tantas vezes associado ao homem. “Reconheço que existe, mas não o senti em momento nenhum. E a minha mulher contribuiu para isso. Estávamos juntos no processo, não era um problema meu, era um problema nosso.”

O abalo no casamento, os gastos

Só que a luta é um abalo para o casamento. “É um processo horrível de esperas, de uma angústia tremenda, de uma vida em suspenso, que obriga a uma grande capacidade de resiliência e comunicação.” Tiveram que se restruturar, repensar o projeto de vida. “Tínhamos de estar preparados para o dia em que nos tirassem o tapete. Cada um de nós lidava de forma muito diferente. Ela mais pessimista, sem conseguir imaginar a vida sem filhos, eu mais otimista. Isto é destrutivo para um casal.”

O Serviço Nacional de Saúde só comparticipa três ciclos de PMA. E foi esse o limite que decidiram impor-se, embrenhados em sofrimento. O privado não entrou na equação. Precisavam de fazer o luto, de seguir em frente. Chegaram a gastar 900 euros em medicação durante um ciclo de PMA. Fizeram cinco, só foram considerados três (dois deles foram incompletos, não chegou a haver implantação do embrião na mulher).

Quinta e última tentativa, 2017. Mesmo avisados de que os óvulos não estavam com características que dessem garantias de sucesso, quiseram avançar. Era a última hipótese, mas queriam virar a página. Dois embriões e, num rasgo de esperança e alegria, contra todas as probabilidades, conseguiram. Gémeos. O Afonso e o Gonçalo. Nasceram em 2018, março de 2018.

As causas, da genética às hormonas

Segundo Nuno Louro, urologista que trabalha na área da andrologia, há 15% de casais que sofrem de infertilidade. Em 20% dos casos o fator masculino está presente isoladamente. “E em metade existe um contributo do fator masculino. Continua a atribuir-se muito a questão da infertilidade à mulher, o que se repercute no facto de ela começar o estudo muito antes do homem, porque está habituada a ir ao ginecologista desde cedo.”

Para o especialista do Centro Hospitalar do Porto, há muitas causas conhecidas da infertilidade masculina, “desde genéticas a doenças que surgem ao longo da vida, tratamentos médicos, nomeadamente quimioterapia, fármacos, consumos tóxicos, tabaco, drogas, obesidade”. Também urologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Pedro Vendeira divide-as entre causas do foro hormonal, que são muitas vezes corrigíveis, e causas do testículo em si. “Uma frequente é o testículo não descer para o escroto, que afeta 4% a 5% dos recém-nascidos. Se se não for corrigido até aos dois anos de vida, os testículos ficam dentro do corpo, submetidos a temperatura elevada e deixam de produzir espermatozoides.” A punção do testículo, quando torce, também é frequente. E o urologista faz entrar no lote as infeções, seja a nível do testículo ou da próstata.

Ainda assim, em 40% dos homens estudados não se chega a perceber a causa. É pelo espermograma, colheita de esperma, que se inicia o estudo de fertilidade no homem. “Analisa-se o número, a forma como se mexem, a morfologia, o aspeto”, explica Nuno Louro. A avaliação passa ainda pela história clínica e por um exame físico. “Examinam-se os testículos para perceber se há algum tumor, nódulo, se há varizes nas veias que drenam o testículo, se é um caso de falta de testosterona.” Às vezes, ainda há estudos genéticos.

Os tratamentos, a PMA

Muitos casos não são tratáveis ou não se consegue identificar a causa, e a PMA é o caminho. Noutros, há tratamento e não se deve avançar para PMA sem a avaliação do homem e da mulher. “Há homens que não produzem espermatozoides e que chegam a mim já com a ideia de usar gâmetas doados e conseguimos com medicação reverter, até chegam a conseguir gravidezes espontâneas”, exemplifica Nuno Louro, que alerta para a importância de uma boa avaliação, num urologista com competências diferenciadas em infertilidade masculina. “É certo que numa percentagem grande não conseguimos fazer nada. Mas há varicocelos que podem ser melhorados, défices hormonais em que conseguimos intervir, doentes que não produzem espermatozoides por terem os canais obstruídos e pode tentar-se desobstruir, cirurgia ao testículo para ir recolher espermatozoides. A urologia pode ter um papel ativo na fertilidade.”

Só que o preconceito é uma realidade, “a ideia da masculinidade assenta muito na virilidade e na função reprodutiva, é quase como se ser infértil significasse que se é menos homem”. E os homens, por norma, não falam de infertilidade, o que leva muitos a crer que é um problema só deles. Pedro Vendeira concorda e acrescenta que o “homem se sente diminuído, culpa-se e isto não é uma questão de culpas”. “Fala-se pouco do assunto, mesmo nos media. As mulheres estão mais bem informadas.”

Também por isso, a Sociedade Portuguesa de Andrologia dá formação a clínicos de Medicina Geral e Familiar. “Muitas vezes, as primeiras queixas não são no ginecologista ou urologista, são no médico de família. E há muitas falhas aqui. Para uma gravidez são precisos dois e, se ao fim de um ano de tentativas alguma coisa falha, os dois devem ser estudados, o homem e a mulher”, destaca Vendeira.

O testemunho de Ricardo Soares, que teve um final feliz, tem razão de ser. Sair do quadrado do preconceito, das crenças erradas. “Há cada vez mais casais nesta situação. E hoje tenho muitos a entrar em contacto comigo para saberem como é o processo e sentirem que não estão sozinhos.”