Provedores, para que vos queremos?

O provedor do cliente é um órgão independente das estruturas das empresas, sejam elas públicas ou privadas, ao qual um cliente insatisfeito pode recorrer

O que fazem, por que princípios se regem, que tipo de situações lhes chegam às mãos e como as resolvem. Provedores de três das empresas que mais reclamações recebem em Portugal contam como é mediar conflitos a toda a hora.

Por vezes, são confusões com as localizações. Caminhos que se pensam serem ruas e afinal não são, moradas em que se lê algo como “Caminho da Tapada” e não se especifica o número, destinos impossíveis de encontrar. Outras vezes, são meros enganos na distribuição. Ou problemas com a entrega das pensões. “Há uns tempos, quando os endereços eram feitos de forma automática, era muito frequente, porque não vinha o endereço completo.” Em todas as queixas deste género que chegam à provedoria do cliente dos CTT, criada há já 30 anos, Luís Centeno Fragoso e a sua equipa (três juristas, ele incluído, e duas administrativas) têm um papel pró-ativo. Ora dissipam dúvidas em relação à nomenclatura das ruas com as juntas de freguesia em causa, ora entram em contacto direto com os chefes de distribuição locais, que se encarregam de ir recolher a correspondência no local errado e entregar no destino correto. No caso das pensões, solicitam até, junto do Centro Nacional de Pensões, a emissão de uma segunda via. E quando nada disto resulta? “Nesse caso, o cliente deve ser indemnizado. E muitas vezes somos nós que sugerimos que assim seja.” A propósito, o provedor recorda um caso particularmente excêntrico relacionado com uma prótese de um pé que desapareceu. “Desapareceu, simplesmente. Averiguámos tudo e mais alguma coisa e não a conseguimos encontrar. Acabámos por ter de indemnizar o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.” Mas também há situações em que o cliente “pede uma indemnização a propósito de uma dada situação e depois acabamos por perceber que a história não é bem como conta”.

“Não estamos vinculados
ao que os serviços dizem” , explica Luís Centeno Fragoso, provedor dos CTT
(Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

Seja qual for o caso, a atuação pauta-se por um princípio basilar, garante Luís Centeno Fragoso: “Somos totalmente independentes. Não estamos vinculados ao que os serviços dizem. Por vezes seguimos aquilo que eles decidem, por vezes não. E muitas vezes alertamos os próprios serviços para o facto de não terem dado uma resposta adequada.” O responsável esclarece, a propósito, que nos CTT, o serviço de provedoria funciona como uma entidade de segunda instância. Ou seja: “Se o cliente reclama junto dos serviços e não fica contente com a resposta, tem sempre a hipótese de reclamar para a provedoria”. É assim há dois anos e meio, mais coisa menos coisa, desde que Luís assumiu o cargo e propôs esta alteração, até para evitar a duplicação de processos e respostas. Outra mudança teve a ver com a forma. Se até aí as queixas eram apresentadas via e-mail, desde então tudo passou a ser feito através de um formulário que está disponível para o efeito, numa secção da página dos CTT reservada ao provedor. Quanto ao número de queixas que lhes chegam por mês (à segunda instância, note-se), esclarece que, atualmente, são “entre 150 a 200”. E admite que a fase da pandemia foi particularmente crítica.

Um órgão independente

Mas afinal, o que é exatamente a figura do provedor do cliente? Que funções lhe competem? Por que princípios se rege? Vamos por partes. Trata-se de um órgão independente das estruturas das empresas, sejam elas públicas ou privadas, ao qual um cliente insatisfeito pode recorrer. A ideia é que a desejável independência permita ao provedor agir com imparcialidade, devendo, inclusive, poder usar meios de investigação e poderes instrutores próprios, de forma a garantir a regularidade das relações entre os clientes e as empresas, abrindo canais de diálogo. É, no fundo, um mediador de conflitos. Ou como salienta Sónia Covita, coordenadora do departamento jurídico e económico da Deco Proteste, é, ou deve ser, “um terceiro imparcial face à relação das partes que estão em conflito”. “Embora não possa impor a sua vontade e tenha poderes meramente consultivos, auxilia as partes a encontrarem uma solução para o caso, de forma voluntária.” E na prática, o que faz? Emite pareceres para as questões levantadas pelos clientes. Pareceres esses que não têm cariz vinculativo, mas vão, à partida, ser levados em consideração pelas empresas e instâncias envolvidas no processo. Acrescente-se que as provedorias do cliente podem funcionar como entidades de primeira ou segunda instância, consoante sejam um órgão a que os clientes possam recorrer diretamente ou uma espécie de via alternativa após uma primeira tentativa malsucedida.

Cristina Torres lidera a equipa da provedoria do cliente da Altice/MEO, que conta com um total de 32 elementos, distribuídos por quatro pontos do país
(Foto: Álvaro Isidoro/Global Imagens)

No caso da MEO, por exemplo, aplica-se o primeiro modelo. Como explica Cristina Torres, diretora da provedoria do cliente da Altice Portugal/MEO, qualquer cliente pode apresentar pedidos, dúvidas, sugestões ou reclamações junto deste órgão, através dos mais variados canais. “Do contacto telefónico ao e-mail, passando pelos centros de arbitragem, entidades de defesa do consumidor e livros de reclamações”, aponta, frisando que o contacto direto com o cliente é uma prioridade. “É a falar com o cliente que esclarecemos as suas dúvidas, compreendemos o problema, avaliamos a urgência e comunicamos o que vamos fazer para resolver.” O resultado são dias “intensos” e um fluxo incessante de contactos que mobiliza dezenas de funcionários, de norte a sul. “A direção de provedoria do cliente MEO tem 32 elementos em quatro localizações do país: Lisboa, Porto, Torres Novas e Algarve”, especifica a responsável. As queixas mais comuns? “Algumas estão relacionadas com pedidos de esclarecimento sobre faturação. Mas também com dúvidas sobre cobertura de rede, roaming e utilização do serviço ou equipamentos.”

Informatização e inteligência artificial

Se na Altice a equipa da provedoria do cliente integra mais de 30 elementos, no caso da E-Redes, a empresa do grupo EDP que assegura a distribuição da energia, há apenas um provedor. Mas não se pense que assim é porque a empresa recebe poucas reclamações. Ou que por causa disso uma boa parte delas acabe sem resposta. O ponto-chave, destaca Luís Valadares Tavares, professor universitário no Instituto Superior Técnico e provedor da E-Redes há 13 anos, é a digitalização. Para provar este ponto, o docente puxa a fita atrás, a esse ano de 2009 em que decidiu assumir o cargo. Especializado em engenharia de sistemas e teoria da decisão, com experiência nas áreas da mediação e arbitragem, foi convidado a assumir o cargo, que também neste caso funciona como entidade de segunda instância, e impôs uma condição. “Achei que não fazia sentido andarmos a abrir cartas e mais cartas. E então disse que só se aceitava se pudesse implementar um design informatizado. E acabámos por nascer já numa matriz totalmente webizada. Desde essa altura que todas as queixas são apresentadas através do site. É o único caso na Europa totalmente webizado e o único que já utiliza ferramentas de inteligência artificial.” Inteligência artificial? Luís Valadares Tavares concretiza. “É uma aplicação baseada em engenharia semântica, através da qual o sistema consegue extrair as palavras mais significativas. Corte, prejuízo, por exemplo. Depois, faz uma classificação e vai à base de dados das queixas passadas. Fazer o quê? Extrair as queixas mais parecidas e os pareceres que eu dei a cada uma delas. Este sistema não só garante a coerência entre os vários pareceres como agiliza a emissão dos mesmos. Mas claro, o parecer final é sempre meu. Há setores em que há dez ou 20 juristas avençados a trabalhar nisto. Neste caso, os pareceres são sempre dados pela minha pessoa. E em 99% dos casos são aceites pela empresa.”

Luís Valadares Tavares, provedor da E-Redes, é especialista em engenharia de sistemas e teoria da decisão, com experiência nas áreas da mediação e arbitragem
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Quanto a resultados práticos, o docente universitário responde com números. “Em sete dias, o cliente recebe na sua caixa de e-mail o parecer”, assegura, acrescentando, orgulhoso, que a provedoria da E-Redes até recebeu recentemente o rótulo de “Best Practice” atribuído pela Comité Europeu de Provedores do Setor da Energia. Foca ainda a questão da transparência. “Quando a pessoa apresenta a queixa recebe um código que lhe permite, a qualquer momento, aceder ao sistema e ficar a saber em que estado está o processo.” E não termina sem deixar elogios ao cliente português que, a seu ver, se “adapta facilmente”.

A regra é não ser obrigatório

Resta uma última questão: afinal, as grandes empresas estão obrigadas a ter um provedor? A generalidade delas não. Como explica Sónia Covita, da Deco Proteste, nem a legislação referente à resolução extrajudicial de litígios de consumo, nem a lei de Defesa do Consumidor impõem a existência dessa figura. “Mas isso não impede determinados regimes jurídicos de imporem a sua criação ou de preverem a possibilidade da sua criação. No ramo segurador, por exemplo, é obrigatório”, salvaguarda. Já no caso das agências de viagens, por exemplo, há a possibilidade de todas as entidades registadas na Associação Portuguesa das Viagens e Turismo aderirem ao provedor da associação, que acaba por funcionar como provedor geral do setor. “Podemos daqui concluir que na maioria dos casos as entidades prestadoras de algum tipo de serviço ou fornecedoras de bens não estão obrigadas a dispor de provedor de cliente. Há, contudo, exceções. Nesses casos, o provedor apresenta-se como uma das entidades que promove a mediação, a par de outras, como os centros de arbitragem e os Julgados de Paz.”