“Prescrição Musical”. Mais do que uma orquestra, uma terapia

Profissionais e estudantes de saúde juntam-se, ensaiam, dão concertos com uma costela solidária. Uma atuação, uma causa. A ideia surgiu numa unidade de cuidados intensivos durante a pandemia. Três médicas (duas anestesistas e uma cirurgiã), um violoncelo, um violino e um piano deram as primeiras notas na cave de uma casa. “Prescrição Musical” começou por ser um trio, hoje é um grupo, e a receita tem composições clássicas e peças contemporâneas.

É um ensaio importante, quarta-feira à noite, véspera de feriado, um frio de rachar lá fora, faltam quatro dias para o próximo concerto da Orquestra Prescrição Musical composta por 25 profissionais de saúde e estudantes da área, sobretudo da região Norte, e alguns músicos que colmatam a lacuna de um ou outro instrumento. O auditório do Conservatório de Música do Porto compõe-se, médicos e músicos vão chegando com caixas de instrumentos às costas ou nas mãos, saudações e cumprimentos, as cadeiras viradas de costas para a plateia são ocupadas. O ensaio começa pouco depois das oito e meia da noite.

O maestro João Pedro Fernandes usa as mãos para comandar as operações e dar instruções em diálogo constante. Os compassos, as respirações, os tempos, o ritmo. Silêncio, quando se toca. “A velocidade está bem assim? É confortável para vós?” Sons fortes mais separados ficam mais moles, avisa. “Mais uma vez. Meninas, está?” As meninas são as violinistas. “Quase toda a orquestra resolveu a última nota.” As notas terão o tamanho que a sala do concerto permitir. A ressonância será fundamental. Cheira a Natal com “A Christmas Festival”, de Leroy Anderson, ali despida com a sua beleza clássica. Fazem-se anotações nas pautas, orientações escritas para não esquecer, os compassos, os tempos, as respirações. A Sinfonia N.º 1 de Beethoven, o Concerto RV566 de Vivaldi, o Poema de Natal de Fernando Valente, o Pop Concerto de Hellbach. O programa vai sendo desfiado pela noite fria lá fora, quente e melodiosa cá dentro, sob o olhar atento do maestro e professor do Conservatório do Porto.

O maestro João Pedro Fernandes, à esquerda, está atento a todos os pormenores
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Marina Morais, cirurgiã geral, está ao piano, tem o 8.º grau do Conservatório, entrará mais adiante no ensaio. Chega o momento, prepara as mãos, estala os dedos, abre a capa preta com as pautas das músicas, coloca-as ao nível dos seus olhos. Entra e sai das melodias nos tempos certos, acompanhamento a preceito. Os dias e as noites no bloco são exigentes, só que ali Marina sentada, costas direitas, abstrai-se de tudo, concentra-se na música, no dedilhar pelas teclas, no seu pequeno solo. O piano em casa dos pais, depois transportado para sua casa, no Porto, sempre teve uso. Nos fins de semana da faculdade, e nas férias, Marina era capaz de passar um dia inteiro a tocar. Era e é uma evasão. “É uma terapia para quem, na vida, precisa de estimular a parte espiritual. Vivemos num mundo muito mecânico, muito técnico, a música é um escape espiritual que faz o nosso bem-estar”, comenta.

Do lado esquerdo do maestro, Clara Gaio Lima, anestesista, toca com o violino que o seu avô, o violinista Alberto Gaio Lima, lhe ofereceu. E não quer outro. Não esquece os almoços dos tempos de criança em casa dos avós, música sempre, sempre música, os primeiros acordes aos seis anos ensinados pelo avô, depois Conservatório a partir dos 13, uma orquestra, projetos, uma digressão por Itália, a paragem da faculdade, internato de anestesiologia nos Açores, e o violino mais quieto. A música, parte entranhada na sua vida, ajuda-a a manter o foco, a manter a calma, a saber relaxar. Faz parte dos seus dias de tão preciosa que é. “A música é uma maneira de ir moderando o dia a dia.” Esses dias e noites passados no hospital. “Como profissionais de saúde, vemos o lado mais negativo, mais duro, mais complicado da vida.” A música amacia e suaviza tudo.

Marina Morais, cirurgiã, toca piano na orquestra, tem o 8.º grau do Conservatório, a música abstrai-a dos dias intensos no bloco
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

O ensaio continua, não haverá intervalo, haverá bolo de aniversário no fim, uma médica fez anos na semana passada, mais um ensaio três dias depois, concerto no domingo, dia 4, há exatamente uma semana, no auditório do TecMaia com angariação de fundos para a Causa da Criança, associação de proteção à infância e juventude da Maia. É sempre assim. Esta orquestra que nasceu em 2021 tem uma costela solidária, a cada atuação uma instituição de solidariedade social apoiada. Ensaia todas as quartas-feiras à noite, quando necessário, há ensaios específicos de grupo de instrumentos supervisionados por um músico profissional. O objetivo é dar nove concertos por ano, pelo menos três grandes espetáculos – Natal, Páscoa e verão. Não há grandes restrições para entrar, saber tocar é um deles. Basta ser profissional ou estudante de saúde e ter pelo menos o 7.º grau de um instrumento.

Rita Resende, anestesista, aprendeu piano, agora toca violoncelo como sempre sonhou. É uma das fundadoras da “Prescrição Musical”
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Rita Resende, anestesista, toca violoncelo, andou em piano no Conservatório, há alguns anos que tem aulas do instrumento que sempre sonhou tocar. Está concentrada no ensaio, de vez em quando marca o ritmo com o pé direito. Trouxe bolachas para os colegas, até porque há quem venha direto do hospital e precise de enganar o estômago até ao jantar. Mostra bonecos-peluches com forma de animais feitos por uma colega médica que não sabe tocar, mas que disponibiliza a arte para ajudar a angariar fundos. “Sentimo-nos bem quando tocamos, como se fosse uma terapia para nós e para quem nos ouve”, confessa Rita Resende. O nome faz todo o sentido. “A vida é mais do que o nosso trabalho, precisamos de sair da nossa zona de conforto.” Tem sido um grande desafio. “A pandemia esgotou-nos bastante”, desabafa. A orquestra é um tempo de partilha, de tocar, de fazer o que gosta. “E tenho de estar bem para ajudar as outras pessoas.”

Tocar, partilhar, ajudar

Liliana Costa, técnica de cardiopneumologia, entra noutra dimensão nos ensaios da orquestra, nos concertos também. Começa logo que sai de casa, na viagem, violino no carro, atravessa o rio, de Gaia para o Porto, a caminho dos ensaios de quarta-feira, livre nos seus pensamentos, nas suas reflexões, nas suas cogitações. É um momento seu, pouco depois junta-se ao grupo, tem o 8.º grau de violino, três filhos, uma vida intensa. Ali tudo pára, quando tira o violino da caixa, senta-se, coloca-o no ombro, encosta-o ao queixo, seguindo as instruções do maestro.

Uma médica, diretora do seu serviço, falou-lhe da orquestra, não hesitou, chegou em maio, sentiu-se imediatamente inserida. “Já não tocava violino há muitos anos e sentia falta”, recorda Liliana Costa. Os seus dias começam muito cedo, seis da manhã, pequenos-almoços, roupas, lancheiras, escolas, trabalho, escolas, sempre uma ida a um parque aberto ou coberto ao fim do dia com os três filhos, esteja sol ou chuva, casa, jantar. À quarta-feira, a refeição pode ficar a meio, é dia de ensaio. “É esta alegria, e é isto, gosto de tocar, estou aqui e estou com quem gosto de estar”, partilha.

Bernardo Neves, médico de medicina interna no Hospital da Luz, Lisboa, fez 300 quilómetro, mais coisa menos coisa, para a sua estreia na “Prescrição Musical”. Ensaio sábado, concerto domingo, percussão por sua conta, conservatório feito, também sabe tocar piano, não cai ali de paraquedas. Conhece alguns colegas da Orquestra Médica Ibérica, de um concerto em setembro, faz parte da World Doctors Orchestra, sede em Berlim e que anda pelo Mundo, com a qual já tocou em Boston, Amesterdão, Estados Unidos, Alemanha, Polónia, entre outras cidades e países. Experiência não lhe falta, à-vontade também não. “É um encontro especial para continuar a tocar e ajudar causas solidárias, é juntar o útil ao agradável”, diz.

Liliana Costa toca violino, chegou à orquestra em maio, inseriu-se imediatamente. Atravessa o rio Douro às quartas-feiras para o ensaio no Conservatório de Música do Porto
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

A ideia desta orquestra de médicos-músicos começou como um dueto, que logo passou a trio, e que depressa cresceu e continua a aumentar – há declarações de interesses que chegam de vários lugares. Quase no fim de 2020, Rita Resende e Clara Gaio Lima, anestesistas, estavam na unidade de cuidados intensivos do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. A pandemia tinha obrigado a redefinir postos e horários na saúde, a deslocar profissionais, a reajustar prioridades. Por um instante, Clara Gaio Lima reparou que Rita Resende pegava numa pauta, uma música de violoncelo, de uma das suas aulas. Perguntou-lhe se tocava, resposta afirmativa, contou que sabia tocar violino. E ali, naquele exato momento, ficou decidido. “Mal acabasse o confinamento, iríamos tocar um dueto. Soubemos, entretanto, de uma cirurgiã que tinha o conservatório de piano, de dueto passámos a trio”, lembra Rita Resende. Marina Morais, a cirurgiã pianista, juntou-se às duas anestesistas. Meses depois, já em 2021, estavam a ensaiar numa sala da cave de casa de Rita. “Enganámo-nos, tocámos mal, mas saíamos tão contentes, tão contentes”, revela a anestesista. E nunca mais pararam, passaram de peças simples a composições mais complexas, pediram ajuda a Sharon Kinder, violoncelista da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, professora de Rita. A vontade de criar uma orquestra com profissionais de saúde foi apresentada à administração da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, projeto aplaudido e elogiado, mais interessados, ensaios no auditório do Hospital Pedro Hispano que rapidamente deixou de ser grande e tornou-se demasiado pequeno. O primeiro concerto, ainda como trio, foi no Terminal de Cruzeiros de Matosinhos, num congresso médico, o primeiro de Natal na Casa de Saúde da Boavista, no Porto. E depois de uma atuação no auditório do Conservatório de Música do Porto, a abertura para aquele palco ser a sala de ensaios.

Clara Gaio Lima, anestesista, toca com o violino oferecido pelo avô, que lhe ensinou os primeiros acordes
(Foto: Pedro Correia/Global Imagens)

Sharon Kinder acompanhou o início da orquestra, esteve no brainstorming do batismo, assumiu a direção artística, está feliz com o percurso, o ambiente familiar ajuda, mas dá trabalho. “Tenho de investigar muito”, justifica. Verificar se o grupo tem os instrumentos necessários para tocar determinada composição. Fazer contas e negociar com o grupo o que faz sentido, o que tocar, o repertório de cada concerto. É a procura constante do equilíbrio. “E é fantástico”, assegura. Composições clássicas, de grandes compositores, como peças mais contemporâneas, medleys de Natal, covers dos Queen, Astor Piazzolla, a banda sonora de “O pirata das Caraíbas”. O repertório veste-se consoante os sítios, sempre adaptado ao contexto, congressos médicos, hospitais, salas de espetáculos, sejam ou não momentos associados à saúde.

A orquestra tem vindo a crescer, a ausência de alguns instrumentos é resolvida com alguns músicos profissionais da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, do Conservatório do Porto, da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo. O dinheiro angariado nos concertos é repartido pelos músicos profissionais, diretora artística e maestro. Os profissionais e estudantes de saúde não recebem nada. Tocam por gosto e nunca se cansam. O que sobra é dado a uma instituição ligada à saúde ou não – já apoiaram associações que ajudam famílias carenciadas, vítimas de guerra na Ucrânia, instituições ligadas à saúde mental. A angariação de fundos para a Associação MRWaterscolours – Arte Solidária, organização sem fins lucrativos que apoia crianças e jovens em contexto social desfavorecido, prossegue no alinhamento da orquestra.

O último concerto da orquestra no auditório da TecMaia, há uma semana
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A pandemia desarrumou tudo, extrapolou o que havia para extrapolar. Mundo em sentido, saúde espremida. “Era tudo desconhecido, havia muito medo do que o vírus significava, a música ajudou-me a lidar com o stress. Todos os dias, vivíamos no limite”, realça Clara Gaio Lima. A orquestra veio em boa hora, o violino voltou a tocar, a falta que sentia, tanta falta. A música, o poder da música. “Vemos o impacto que tem em todos nós, tentamos fazer o melhor com o que sabemos”, acrescenta. Apesar do trabalho intenso, os ensaios de quarta-feira são já uma rotina. “É gratificante para toda a gente, temos muitos motivos para virmos cá todas as semanas”, admite Marina Morais. “É outra forma de ajudar e, no fundo, relembrar o resto da sociedade de que há pessoas em necessidades.” Tocar e ajudar.

A estreia do médico Bernardo Neves neste grupo musical, assumindo a percussão. Toca pelo Mundo com outros colegas
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

Bernardo Neves agradece a amabilidade desta colaboração com a orquestra a norte e espera que se repita, é um gosto tocar e conhecer mais colegas com interesses em comum. “É uma terapia, sim, a música tem muita importância na vida de todos nós.” De quem toca e de quem ouve. “Na maneira de estar, de ouvir os outros, no trabalho em equipa.” Na profissão que exige concentração e entrega, na vida que se quer leve. Com música. Sempre com música.