Portuguesas na conquista do Espaço

São portuguesas e trabalham na área do espaço, entre missões para a Agência Espacial Europeia, lançamentos para Marte, um vaivém para experiências em microgravidade e satélites para observar a Terra. Ainda estão em minoria, mas os voos são cada vez mais altos, num mundo onde o fascínio nunca se perde, só se agiganta.

Até podia estar escrito nas estrelas, mas ainda hoje Celeste Pereira não sabe bem como é que à última hora, a dois dias de fechar o concurso de acesso ao Ensino Superior, a partir da sua vila de Vouzela, Viseu, decidiu trocar a Medicina Veterinária pela Engenharia Química. Na verdade, até sabe, não queria abdicar da Matemática nem da Química. Só não imaginava que o curso a ia levar ao céu. Tem 50 anos acabados de fazer, trabalha em tecnologias do espaço desde 2007. Um acaso que não foge ao fascínio de miúda. “Lembro-me de ver a série ‘Espaço 1999’, obviamente que era ficção científica, mas toda aquela tecnologia que os humanos eram capazes de criar, o viver noutro planeta, era fascinante.”

A investigação esbarrou-se no caminho, começou a investigar processos químicos, reações químicas, na área da engenharia dos materiais. E foi no INEGI (Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia Mecânica e Engenharia Industrial) que lhe lançaram o desafio de investigar nanomateriais, “muito ligados ao espaço”. A partir daí, a história escreve-se além do planeta Terra. Celeste coordenou o primeiro projeto europeu para fibra de carbono europeia – EUCARBON -, um material tão resistente como um aço ou um alumínio, mas muito mais leve. Muito usado no espaço, em satélites por exemplo, mas também na indústria automóvel e aeronáutica, e de que a Europa ainda é muito dependente de países como os Estados Unidos e o Japão.

Aos poucos, foi-se especializando em materiais para o espaço até chegar a Marte. Sim, a Marte. À data, colaborava com a empresa alemã HPS – mais tarde também foi criada a HPS em Portugal, no Porto, em que entrou como sócia em 2013. Foi nesse ano que a HPS conseguiu o contrato para a missão ExoMars 2016, com a Agência Espacial Europeia (ESA). Celeste e a sua equipa trabalharam em coberturas térmicas para embrulhar satélites e sondas espaciais. Ela simplifica: “O objetivo é assegurar que as estruturas não aquecem nem arrefecem. O ambiente espacial é muito agressivo, com muitas flutuações de temperatura, e os satélites precisam de temperaturas estáveis”.

Celeste Pereira está a trabalhar num equipamento para uma missão exoplanetária. A investigadora fez parte da equipa que criou coberturas térmicas para um veículo espacial que chegou a Marte

A ExoMars 2016 foi uma de duas missões para explorar o Planeta Vermelho. O veículo espacial foi lançado em março de 2016 e chegou a Marte em outubro desse ano. “O grande objetivo era demonstrar que a Europa tinha a tecnologia certa para descer na atmosfera de Marte.” Mas uma falha na configuração da descida (que não teve a ver com os revestimentos térmicos) deitou a prova de força por terra, “o módulo desceu mais rápido do que seria desejável e esmagou-se na superfície”. Nada que apague da memória o momento grandioso de uma equipa inteira colada à televisão, a partir de Portugal, a assistir à missão em direto. “A verdade é que o nosso revestimento funcionou, o veículo espacial entrou na atmosfera de Marte. Era a sensação de fazer parte de uma missão, que também dependia do nosso trabalho.”

A desilusão não a impediu de continuar a olhar as estrelas. E em 2019, cofundou a Optimal Space. “A Optimal trabalha para a indústria automóvel, tem capacidades de produção únicas de componentes usados nos satélites e criei a unidade de negócio do espaço.” Agora, está a desenvolver um equipamento especial para testar a estrutura do satélite da missão Plato, da ESA, “uma missão para explorar planetas fora do sistema solar”. A ideia é perceber como se comporta em ambiente espacial, antes de ser lançado. Mas Celeste não desacelera. A seguir vai desenvolver instrumentos de ótica para a missão FORUM, que vai registar a radiação infravermelha emitida a partir da Terra para o espaço.

Pelo caminho, a magia não se perde, guarda o mesmo deslumbramento de miúda. Apesar da competição, desenvolver tecnologia espacial é um autêntico exercício de trabalho conjunto para um desafio comum. Entusiasma-se com os sucessos de Elon Musk, com a SpaceX. E com os relatos de astronautas. “Todos dizem que quando olham de fora para a Terra, ela ganha uma dimensão gigante.” E acredita que será possível viver em Marte.

Aliás, não é uma crença, “a tecnologia que se está a desenvolver é a preparar isso, estas missões são para preparar uma ida de humanos”. Para descomplicar, compara a exploração espacial aos Descobrimentos. “Os navegadores portugueses, quando partiram, o que é que sabiam? É quase como ir agora para Marte. E os riscos na altura até eram maiores, porque não havia a tecnologia de hoje.”

Mora no Porto, é mãe de três filhos, todos rapazes, com muitas viagens de trabalho pelo meio, às vezes três por mês. Isso nunca a parou. “Cheguei a levá-los para reuniões. E em França ou na Alemanha, chegaram a perguntar porque é que era eu que estava ali. Estive numa equipa internacional de 30 pessoas em que era uma das únicas mulheres. E vinha de um país pequeno, de uma empresa pequena, era a mais pequena em tamanho (1,60 metros de altura) e era mulher.” A brincadeira tem um lado sério, tanto que põe os olhos em Portugal e orgulha-se. “Sinto que, proporcionalmente, há mais mulheres a trabalhar nesta área do que noutros países europeus, sobretudo na investigação.” Na área das engenharias, ainda são poucas.

O amor à observação da Terra

Vamos a contas. Na pequena equipa da Agência Espacial Portuguesa, nove são mulheres e 14 são homens. Ou seja, as mulheres representam 39%. Se alargarmos a escala e aterrarmos na Agência Espacial Europeia, segundo dados cedidos à “Notícias Magazine”, num total de 2725 trabalhadores, 833 são mulheres (30%), sem contar com contractors. É precisamente aí que encontrámos Sara Aparício. É contractor em Itália, em Frascati, no Centro de Observação da Terra da ESA. Recua no tempo, há seis anos, quando arrumou a vida numa mala para fazer um estágio de um ano, depois de uma candidatura a nível europeu, não imaginava que hoje, aos 33, ainda por lá estaria.

Estudou Engenharia do Ambiente, mas foi uma missão da ESA que a pôs a sonhar com o espaço. “Quando enviaram um satélite para estudar um cometa, fiquei muito interessada.” Mais do que o espaço, é apaixonada pelo planeta Terra. Apoia a gestão de projetos de empresas, centros de investigação, indústrias que colaboram com a ESA. E, no tempo que lhe sobra, trabalha com dados de satélite de observação da Terra. “Estou a fazer doutoramento. Espero usar satélites para estudar fenómenos sazonais que ocorrem no gelo marinho no Ártico. O derretimento do gelo é normal, é um fenómeno cíclico, mas a velocidade com que está a acontecer não é.” Quer usar satélites para observar essas regiões extremas, onde é difícil e caro chegar, para melhorar os modelos climáticos.

Sara, que já liderou uma associação de cientistas polares, quer usar satélites para estudar fenómenos sazonais que ocorrem no gelo marinho no Ártico

É fácil perceber-lhe a paixão pelo Ártico, não o disfarça, em catraia ficava colada à televisão a ver documentários. Cresceu e entretanto já esteve na Gronelândia e em Svalbard, na Noruega, com grupos de investigação. “Sinto que foi o mais próximo que estive deste Planeta. Aquele deserto branco e bruto, foi uma experiência que me emocionou.” Mas o espaço, a incógnita, o pouco que ainda sabemos, tem um lugar especial no coração. “Ironicamente, apesar disso, a minha investigação é do espaço a olhar para a Terra. E não da Terra para o espaço.”

Sara trabalha no programa Copernicus, “o maior programa de observação da Terra do Mundo, é europeu, e todos os dados criados por este programa são gratuitos, qualquer pessoa pode aceder”. Há uma quantidade absurda de dados que vêm do espaço sobre o nosso Planeta, que só a inteligência artificial pode ajudar a processar. No meio de tudo, um sonho: “Contribuir com o que se pode retirar do espaço para ajudar a perceber o que se passa na Terra. A recolha destes dados e o estudo dos mesmos pode ter impacto em decisões políticas”.

A jovem, de Lisboa, costuma dizer que tem a cabeça na lua, mas está sempre a olhar a Terra. Ainda assim, já se meteu numa missão análoga (lunar), na Polónia. “Foi no ano passado, é um grupo de pessoas que entra num sítio e simula-se que estão numa missão em Marte ou na Lua. O objetivo é estudar os efeitos psicológicos do isolamento, por não haver exposição ao sol, por comer comida desidratada dias a fio, estudar as dinâmicas sociais no grupo.” Uma experiência de duas semanas, só pelo gozo, aguentou-se.
Ser mulher neste meio não lhe trava a ambição. Se fizer “rewind” no tempo, já sente uma diferença substancial. E só lá vão seis anos. “Quando comecei, as salas eram constituídas por 90% de homens. E agora diria que está 50/50. A ESA esforça-se muito para haver representação feminina.”

Do GPS à missão para desviar um asteroide

As mulheres começam a conquistar lugares onde a gravidade desce, e o facto de haver três portuguesas entre os 13 candidatos nacionais a astronautas da ESA é a prova viva. Como também o é Teresa Ferreira, diretora da área do Espaço na tecnológica GMV, Lisboa, que tantas vezes une esforços à Agência Espacial Portuguesa. Da Engenharia de Telecomunicações começou a trabalhar com satélites, há quase 20 anos, na área do espaço, um acaso que parecia premeditado. “Logo depois do curso aterrei nesta empresa e achei o trabalho tão interessante que acabei por fazer um mestrado em navegação por satélite.” Nunca mais dali saiu.

Teresa Ferreira esteve envolvida na criação do GPS europeu e coordena equipas que trabalham em várias missões espaciais

O trabalho que estava a desenvolver com o sistema de navegação por satélite da União Europeia, o Galileo, o GPS europeu, teve dedo nisso. “Claro que o espaço é sempre uma área atrativa, por causa do sonho envolvido. Mas fui muito movida pelo meu trabalho na altura. O Galileo foi aprovado em 1998, no início do século XXI estava a começar a ser criado. Vivi a construção de um sistema desta dimensão desde o início.” O lançamento da constelação Galileo está marcado numa história que também lhe pertence. “Fomos a primeira entidade privada a processar os sinais iniciais emitidos por um satélite Galileo, aqui em Lisboa. Estava a liderar essa equipa e foi um grande marco.”

A GMV colabora com a ESA no controlo deste sistema e está já a trabalhar na segunda geração do Galileo. Foi por aí que começou um caminho que escalou de função em função, até hoje, em que lida com muito mais do que o Galileo. A começar na missão Hera, de defesa planetária, a cargo da ESA – e a par da missão DART, da NASA – que quer demonstrar se é possível desviar um asteroide, que venha em direção à Terra, da sua rota. “A ESA vai lançar uma sonda, a HERA, para analisar o embate do DART num asteroide. Temos muita tecnologia portuguesa a voar, um laser feito em Portugal e a GMV é responsável pelo seu controlo”, explica a engenheira, que também está a trabalhar no software de um vaivém espacial.

Chama-se Space RIDER, deverá voar já este ano e vai ficar a orbitar a Terra durante meses, “lá dentro permite voar experiências científicas em microgravidade, em particular na área farmacêutica”. Teresa está ligada a todos os projetos, ou não fosse a diretora, mas a grande responsabilidade é a de decidir em que áreas tecnológicas se deve apostar, é antecipar o futuro. Havendo cada vez mais satélites em órbita, sabe que a tecnologia vai ser crucial. “Hoje, enviamos um satélite, e quando chega ao fim de vida é deixado como lixo em órbita. Não há razão para isso. Podemos ir lá reabastecer, arranjá-lo, movê-lo, através de robôs ou espécies de drones que vão entrar no espaço.”

Para lá do mundo espacial, a observação da Terra também entra no lote das muitas coisas que tem em mãos, e “Portugal tem uma das maiores equipas europeias no programa Copernicus”. Neste campo, a GMV ajuda em gestão de catástrofes, com dados sobre a área e intensidade de um incêndio ou quantificação dos riscos. “Recentemente, a equipa esteve envolvida no fornecimento de informação sobre as cheias que afetaram a Alemanha à Comissão Europeia.” A verdade é que os dados de satélite ajudam, e muito, a vida dos cidadãos. O GPS é só um exemplo.

Já dizia a introdução dos filmes da saga Star Wars de que tudo acontecia “numa galáxia muito, muito distante”. Mas a realidade ultrapassa a ficção e o espaço, “embora pareça muito longe nas nossas cabeças, está cada vez mais perto”.