Anotar acontecimentos, sentimentos e ideias num diário é um hábito simples, com muitos benefícios, que deve ser cultivado. Escrever ajuda a processar sentimentos e emoções, a organizar ideias, a ter um auxiliar de memória e a favorecer a noção de que podemos mesmo escrever - ou reescrever - a nossa vida todos os dias.
“Todos os dias a vida recomeça, mas eu nem sempre pareço recomeçar. (…) Faltou-me a ousadia para acreditar em mim. A coragem para confiar no recomeço a que a vida me convida a cada amanhecer. Amanhã, continuo ou recomeço?” Esta é uma entrada recente do diário de Liliana Ferreira. A educadora parental, de 37 anos, escreve, desde criança, sobre aquilo que a desassossega, mas foi na adolescência, “a altura em que as inquietações existenciais mais afloram”, que começou a fazê-lo de forma regular. Chamava Kitty ao diário. Nele contava sobre a escola, os amigos, a relação com a irmã e os pais, as paixões, as dores de crescimento, as emoções.
No secundário passou a escrever sobretudo poesia e, na altura da faculdade, deixou de ter diário, mas escrevia todos os dias um e-mail ao namorado, hoje marido, que estudava a 300 quilómetros de distância. Retomou em força a escrita regular quando foi mãe, há dez anos. “As inquietações voltaram em força e, como sempre senti que escrever era para mim a forma mais natural de exteriorizar o que sentia e dar-lhe sentido, os diários passaram a estar sempre presentes na minha mesa de cabeceira.”
A psicóloga clínica Isa Silvestre explica que, “para as crianças e jovens, um diário muitas vezes funciona como um melhor amigo”, e que a maioria dos adultos abandona essa prática “porque sente muitas dificuldades em dedicar tempo a parar, pensar, sentir e escrever as emoções e os acontecimentos”. Isso significa que a razão pela qual é difícil ter um diário é exatamente a mesma pela qual se deve tê-lo: criar tempo para parar, pensar e sentir.
“A escrita de um diário pessoal requer uma atitude atenta e reflexiva, especialmente se for realizada de forma regular sobre acontecimentos, vivências e emoções do dia a dia. Ajuda a organizar objetivos práticos diários, metas a nível pessoal e profissional, a pensar e a refletir sobre os pensamentos e as emoções. É uma ferramenta para o autocuidado e a autodescoberta com muitos benefícios” (ver caixa), garante a psicóloga, que começa, ela própria, todas as suas manhãs, com um caderno e uma caneta e praticar journaling [escrever um diário] durante dez minutos.
Para quem não quer escrever diariamente, a escrita pontual também tem benefícios, particularmente em fases da vida mais desafiantes. Pôr as emoções difíceis no papel pode ajudar a dar-lhes uma perspetiva diferente ou simplesmente aliviar o peso que causam.
Como escrever?
As notas que se tiram podem ser feitas no formato ‘escrita livre’, registando aquilo que surge como mais importante, mas também é possível fazer alguns exercícios mais direcionados. Isa Silvestre deixa algumas ideias: “A resposta a perguntas concretas (porque é que fiquei triste com…?), um diário da gratidão (hoje estou grata por…), definir as tarefas para o dia que vai começar (as três tarefas mais importantes) ou relatar o dia que passou (hoje fiz isto e senti-me deste modo)”, exemplifica.
Tirar notas regulares também é importante quando se está a fazer um processo de psicoterapia. A psicóloga revela que “há clientes que, por iniciativa própria, utilizam um caderno para registar pensamentos, descobertas internas e estratégias que desenvolvemos desde a primeira sessão. No entanto, ao longo de um processo psicoterapêutico também é habitual sugerir um registo dos pensamentos e das memórias que são facilitadas pela associação de ideias após cada sessão.”
Liliana Ferreira, que tem acumulado volumes de cadernos de notas nos últimos anos, faz exatamente essa diversificação. “Às vezes escrevo sobre situações que me acontecem e que preciso de organizar mental e emocionalmente”, conta, “mas hoje em dia serve-me sobretudo para fazer exercícios e práticas de desenvolvimento pessoal e para registar citações e excertos de livros que leio, que naquele momento me faz sentido deixar no meu diário”.
No último ano, já escreveu o seu próprio obituário, registou práticas de comunicação não-violenta acerca de desafios na relação com os outros, fez registos de gratidão semanais, exercícios de autocompaixão, balanços mensais de objetivos e tirou notas sobres as coisas engraçadas que as filhas fazem ou dizem. “É um diário multifacetado”, resume. “É muito importante escrevê-lo porque me ajuda a exteriorizar as minhas inquietações, a organizá-las e a ressignificá-las. Como por exemplo, quando regresso às páginas escritas há algum tempo e percebo que nenhum estado ou situação é permanente.” Ou seja, que a vida está sempre a ser (re)escrita.
Razões para ter um diário
A psicóloga Isa Silvestre deixa um apanhado dos benefícios de escrever diariamente:
- Maior clareza e foco mental. Esta técnica ajuda-nos a parar e a pensar sobre os acontecimentos do dia.
- Aumenta a autoconfiança e a autoestima. Escrever sobre nós, sobre aquilo que sentimos e vivenciamos, permite-nos identificar os nossos pontos fortes e fracos, e com isso obter um maior autoconhecimento e autoconfiança.
- Mantém a memória ativa. O journaling ou diário pessoal é um exercício de retrospeção que potencia a nossa memória.
- Facilita a organização mental. A atitude de parar, sentar e escrever sobre o dia é um exercício meditativo, que ajuda a organização.
- Melhora a inteligência emocional. Aprendemos a pensar, a identificar e a refletir sobre as nossas emoções e as nossas reações.
- Reduz o stress e a ansiedade. Esta técnica exige foco e concentração, tem os benefícios meditativos de manter a mente ocupada e distante das obrigações e responsabilidades diárias.