Valter Hugo Mãe

Pintar banhistas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A pintura de Albuquerque Mendes é um tratado sobre o riso. Não se retrai perante a crítica do pior nem perante a tragédia, mas é-lhe natural a denúncia da idiossincrasia, a incoerência descarada, o postiço e o falso, a condição vulnerável e iludida da humanidade.

No subsolo do Cine-Teatro Garrett, na Póvoa de Varzim, está a exposição “O homem que vê aviões debaixo da terra”, do mestre Albuquerque Mendes, com curadoria de Tomás Carneiro. Uma exposição de Albuquerque Mendes é sempre o acontecimento da maravilha, e esta não é excepção. Contudo, há algo que me chama particularmente a atenção: o conjunto de telas de pequeno formato onde se pintam os banhistas nas praias, em pé, como grupos de pessoas deambulando no vento.

O que são estas praias de mar mas também verdes, usadas por gente em pé, dispersa, imprecisa, vestida até de gravata, com corpos impossíveis de barrigas pontiagudas e surreais? O que são estas pessoas estranhas que parecem acorrer a este lugar e se deixam bizarríssimas ao sol e ao vento como não houvesse maior destino do que aquele de estar por ali bastante à deriva? Talvez seja esse mesmo o propósito do banhista, não ter por que esperar e não haver função. Exercer uma cidadania demissionária, suspensa, e passear a pele exposta para alimento de vitamina, contra constipações e gripes futuras.

A pintura de Albuquerque Mendes é um tratado sobre o riso. Não se retrai perante a crítica do pior nem perante a tragédia, mas é-lhe natural a denúncia da idiossincrasia, a incoerência descarada, o postiço e o falso, a condição vulnerável e iludida da humanidade. É curioso como diferem estes banhistas dos seus marinheiros mostrados em Vila do Conde há um par de anos. Se os marinheiros eram circunspectos e frios, de olhar intenso como quem vê para longe, os banhistas são eles próprios a impressão da lonjura, representados como se não tivessem outro conteúdo senão o de se destituírem de tudo e restarem como corpos na luz. Os banhistas não precisam da intensidade para ver ao longe nem aludir a profundidade, eles são a distância, a fuga completa, consumada, estão no lugar extremo de não quererem mais nada.

Estas telas convocam Cesariny, que eu via todos os verões na Póvoa de Varzim, metido nas memórias antigas de família, a passear com seus cigarros, meio a rir-se dos outros e meio trapalhão. Existe alguma coisa das suas meninas de aspecto triangular, a Poesia, figura recorrente que inspirava uma cândida e inusitada alegria. Do mesmo modo, Albuquerque Mendes alude a alguma alegria mas, por maior riso que debata ou proponha, não posso deixar de confessar que aquilo que mais me perturba é a ferida constante, uma melancolia encontrada na languidez das suas figuras, algo que me leva invariavelmente à sensação de ver gente ao abandono. Gente que chega à tela como a um pequeno anúncio amoroso, buscando par, buscando alguém. Assim são todas as pessoas nas telas deste mestre: colocam-se diante de nós para saberem se seremos aqueles por quem esperaram a vida inteira.

De algum modo, nestas praias de A-Ver-o-Mar que a nova exposição revela, vejo os banhistas tortos e tão mestiços entre Jacques Tati e Manoel de Oliveira, e sinto vontade de chegar perto para os abraçar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)