Valter Hugo Mãe

Pedir a S. Bento


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Não tenho nenhuma certeza sobre ter vivido o que vivi, mas julgo que, sem alvoroço, me deixou um sentido de espera, uma impressão de que adianta pouco o desespero, e que nos melhora certa entrega positiva, o mais estável possível, à constante batalha de sobreviver.

As pessoas milagradas por S. Bento, desde logo com a cura súbita dos cravos nas mãos, podem tender a pedir por tudo, convencidas de que os milagres estão à distância de um qualquer nico de fé e que um santo se dá a muito ócio e haverá de ter tempo para a agenda de aflições do cidadão comum. Eu, de outro modo, curado dos cravos nas mãos em criança, passei a vida inteira a achar que a minha quota de milagres estaria cumprida e que, a partir de ali, qualquer desafio teria de ser passado na sóbria evidência de que a minha vez já passou. Se isso é terrível? Não.

Alguma coisa no acontecimento tão rotundo de algo sem explicação científica deita por sobre todas as angústias a convicção de que muito do que nos diz respeito é para depois do concreto. É para muito depois das evidências. O que não cria imediatamente a ideia de haver Deus ou algo mais impensado, mas deixa clara a hipótese de que há sentidos discretos, ou até secretos, que aguardam por razões que não dominamos, e haverão de ser causa de muito do que nos salva ou condena. Ou, melhor, haverão de disfarçar muito do que parece salvar-nos e muito do que parece condenar-nos.

Não tenho nenhuma certeza sobre ter vivido o que vivi, mas julgo que, sem alvoroço, me deixou um sentido de espera, uma impressão de que adianta pouco o desespero, e que nos melhora certa entrega positiva, o mais estável possível, à constante batalha de sobreviver. Assim, cheio de perdas, aceitar que o processo é mesmo este é fundamental.

Uma pessoa amiga dizia-me que lhe era do foro do inacreditável que um homem de 50 anos como eu persistisse sem nunca ter tomado calmantes, ansiolíticos ou indutores de sono. Apercebo-me que em meu redor quase toda a gente é medicada e que eu estou aberrante na aceitação até ingénua de minhas mazelas. Não sei ser de outro modo. Não durmo nem acordo medicado talvez pela ingenuidade de pensar sempre que me compete ver com secura os dias. Não contar com muletas, descontos no preço das dores. Vou sempre convicto de que, certamente, um dia destes não suportarei mais nada. Mas, enquanto não quebrar de vez, recupero de cada coisa na química solitária da minha cabeça.

Andamos a precisar de um milagre novo por aqui. Já está pedido e valerá muito mais do que a cura dos cravos nas mãos. Eu tenho a certeza de que S. Bento está algures a pedir que o corvo vá e venha de seu ombro, de seu pé. Um S. Bento e um corvo para sempre, sem fim. Ou, então, nós é que teremos a propriedade do inexplicável e, juntos ou apenas à força última de apenas um, haveremos de inventar novamente o que é dado como impossível. Talvez o sentido maior de toda a vida seja este: o de prepararmos o próprio milagre. Fazê-lo. Como se do nada. A partir de uma força sem nome e que não se mede mas se pressente.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)