Margarida Rebelo Pinto

Palavra de mulher


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Vivemos num mundo irremediavelmente machista quando se dizem barbaridades como fulana subiu na horizontal, em vez de se dizer que os homens só deixam subir naquela empresa as que com eles se deitam.

Quando esta crónica der à estampa já terá corrido muita tinta, sobretudo virtual, sobre a absurda polémica em torno do vídeo de Sanna Marin a dançar com um grupo de amigos. Porque é que é notícia que a primeira-ministra da Finlândia se diverte numa festa? Infelizmente a resposta é só uma e é bastante triste, porque é uma mulher. A luta é eterna, quando mesmo no primeiro mundo, dito ocidentalizado e civilizado, aos homens quase tudo é tolerado ou desculpado pelo facto de serem homens, enquanto às mulheres quase tudo pode ser criticado ou expiado pelo facto de serem mulheres.

O mundo sempre exaltou a virtuosa caladinha, fanática de bordados e de outras atividades do lar que a glorifiquem e a prendam na armadilha doméstica, esse terreno minado dos três F: fraldas, fogão e ferro de engomar. Para ganharmos o direito ao voto foi o cabo dos trabalhos, nos anos 1980 a moda adquiriu laivos masculinos para reforçar as conquistas femininas no mercado de trabalho, ganhámos voz e território, quotas e licenças sofrivelmente decentes, mas a bela recatada do lar, a santa e a boazinha que não faz ondas são estereótipos milenares que nunca deixaram de encantar as fações mais conservadoras das hostes masculinas.

Nada de ilusões: no Ocidente também nos querem pôr uma burka quando dizem frases do género, aquela já varreu o bairro inteiro, ou a vizinha é uma fácil, porque anda toda descascada. Também nos querem enfaixar os pés como no Oriente quando resistem à integração de mulheres nas administrações de empresas (gays ainda vá, emprestam aos boards um certo chique cosmopolita), e, quando integram, tantas vezes é só para fazer figura de corpo presente.

Vivemos num mundo irremediavelmente machista quando se dizem barbaridades como fulana subiu na horizontal, em vez de se dizer que os homens só deixam subir naquela empresa as que com eles se deitam. O ónus é sempre nosso, tal como a culpa e a vergonha de tudo o que acontece.

E tantas vezes o machismo é de tal forma endémico que o agressor nem se dá conta, ao comentar com hipócrita simpatia, para engenheira não é nada feia.

É preciso ter muita paciência para resistir de cabeça erguida a ataques ao nosso género que começam assim que nascemos. Infelizmente não posso esquecer os labregos que me lançavam piropos ordinários às 7 da manhã na paragem do autocarro e os tarados que se encostavam lascivamente ao meu corpo de adolescente no metro. Para esses, nunca houve punição.

Paciência, resistência e de vez em quando uma bofetada ou um chega p’ra lá verbal que ponha os insolentes no lugar de onde nunca deveriam ter saído se tivessem tido um pai que respeitasse as mulheres e/ou uma mãe que não se tivesse deixado espezinhar, humilhar, ou encostar às cordas com atitudes e palavras condescendentes, como foram tantas mulheres, em tantas épocas e em tantas culturas.

A luta é eterna, mas estamos cá para isso. Desejo a Sanna Marin uma carreira política longa e cheia de triunfos e que continue a dançar em todas as festas que lhe apetecer. A liberdade continua a dar muito trabalho, mas o Mundo pode contar com a nossa determinação em nunca baixarmos os braços. Palavra de mulher.