Ouvir livros é o mesmo que ler livros?

Quem ouve um livro foca-se mais na essência do que está a ser dito, no seu significado

Com a explosão do mercado dos audiolivros, “ler” agora pode significar “ouvir ler”. As novas tecnologias permitem que possa avançar num livro ao mesmo tempo que conduz, faz desporto ou cozinha o jantar. Esta, que é a principal vantagem dos audiolivros, pode ser, simultaneamente, o seu pior inconveniente: a atenção dividida prejudica a compreensão.

Houve um tempo em que ler um livro exigia pegar nele e ficar mais ou menos imóvel, sentado ou deitado, de preferência num ambiente tranquilo, decifrando palavra após palavra, linha após linha. Hoje, é possível “ler” um qualquer clássico da literatura mundial ao mesmo tempo que se conduz a caminho do trabalho ou de uma reunião noutra cidade.

Os livros narrados e gravados – que foram durante décadas uma exceção direcionada para crianças ou pessoas com deficiência visual – representam hoje um mercado, a nível global, de cerca de 3,5 mil milhões de euros, esperando-se que atinjam os 13 mil milhões em 2027. Foi por volta de 1998, com o surgimento da plataforma Audible que passou a ser possível comprar livros em formato para ouvir. Em 2020, só nos Estados Unidos da América (EUA), foram publicados, de acordo com a Associação Americana de Editores, cerca de 71 mil títulos nesse formato.

A grande vantagem apontada pelos utilizadores de audiolivros é não exigir a dedicação e exclusividade que exige a leitura: oferece a possibilidade de aproveitar para “ler” nos períodos de tempo ao volante, a fazer o jantar ou a dar um passeio. Isso é possível porque o audiolivro, ao contrário do livro escrito, não exige imobilidade, mas também porque, é uma atividade mais intuitiva. “Ler apenas se desenvolve mediante um conjunto de metodologias próprias, já ouvir, em caso de funcionamento estrutural normal, desenvolve-se informalmente”, lembra Teresa Silveira, autora do livro “Cérebro e leitura” (Lema d’Origem). “Por isso, ouvir – e, neste caso em particular, ouvir a ler – é mais compatível com a realização em simultâneo de outras tarefas, devido à ‘naturalidade’ da capacidade inata no sujeito”, explica a autora. “Já um cérebro em leitura requer, praticamente, a totalidade da sua ação hemisférica e inter-hemisférica.”

É por haver esta menor exigência que a autora vê como um risco a substituição do ler pelo ouvir ler, sobretudo entre os mais jovens. “O verdadeiro gosto pela literatura só pode acontecer quando a vivemos na primeira pessoa, quando lemos. Como é que alguém pode verdadeiramente usufruir da natação se não entrar na água e nadar? Vendo e ouvindo os relatos de quem nada pode imaginar e sentir vontade de experimentar. Mas só o conseguirá viver na primeira pessoa se aprender a nadar e praticar”, compara. “O mesmo se passa com a leitura.”

Dois formatos, um objetivo

Há pessoas que pensam que não se deve dizer que se leu um livro se, na verdade, o que fez foi ouvir. Arthur Markman não é uma dessas pessoas. “Aquilo que fica e que se aprende com as duas experiências é semelhante. Quando alguém chega ao fim de um livro, quer o tenha lido sozinho, quer tenha tido alguém a ler para si, o livro conta como tendo sido lido, sim”, defende o professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Texas, Austin (EUA) e investigador na área da Psicologia Cognitiva. Concede, porém, que o livro escrito é uma experiência mais pessoal, já que estamos dependentes da nossa voz interior para criar tudo o que não está escrito, sendo os audiolivros uma experiência mais social porque estamos a ouvir a voz de outra pessoa.

O investigador considera que “a formação de memórias é diferente, dependendo do modo como se consome a informação”. Por exemplo, ao ler, estamos a olhar para carateres numa página e o nosso cérebro está ocupado a preencher os espaços: o aspeto das pessoas, a cena, o som de vozes. “Também nos focamos muito na formulação precisa, na construção das frases, nas palavras específicas”, esclarece.

Já quem ouve um livro foca-se mais na essência do que está a ser dito, no seu significado. “As palavras são passageiras e, portanto, tendem a não ser lembradas especificamente.” Apesar dessas diferenças, não vê que um dos formatos seja necessariamente melhor do que o outro. “A razão pela qual as pessoas leem ou ouvem qualquer coisa é para entender o que está a ser transmitido”, frisa. Assim, importa apenas que entendam – e é isso que parece acontecer.

Dada a importância da compreensão de texto, foram feitos muitos estudos para tentar detetar diferenças entre os dois formatos. Um deles, levado a cabo em 2016 por Beth Rogowsky, da Universidade de Bloomsburg, Pensilvânia (EUA), usou várias secções do livro “Invencível – uma história de sobrevivência, resistência e redenção”, de Laura Hillenbrand. Foram divididos 91 voluntários em três grupos: uns leram os trechos selecionados num e-reader, os outros ouviram-nos em versão audiolivro e outros leram e ouviram ao mesmo tempo. Todos efetuaram um questionário no final para avaliar a compreensão e não houve diferenças significativas entre os três grupos.

Livros e leitores diferentes

Acontece que isto pode não ser igual para todas as obras. Se o livro for fácil, o suporte não tem muita influência na compreensão, mas, se o texto for complexo, a apreensão é mais fácil com a leitura. “A compreensão de conteúdo mais denso implica muitas vezes que se volte atrás para o revisitar e é muito mais fácil folhear uma página ou duas para trás do que andar à procura de uma frase numa pista de áudio”, pormenoriza Matthew Traxer, professor de Neurociência Cognitiva da Universidade da Califórnia, Davis (EUA), onde tem estudado questões relacionadas com a psicolinguística, ou seja, os aspetos psicológicos e neurobiológicos de como processamos a linguagem. “Os leitores experientes são muito bons em saber quando reler e também em fazer movimentos oculares para trás – as regressões – para partes dos textos que os podem ajudar a resolver a dificuldade atual de compreensão. A capacidade de reler à vontade é muito útil para textos difíceis.”

Em média, em leitura silenciosa, um adulto lê entre 250 e 300 palavras por minuto. A nível de discurso, porém, estima-se que, para uma boa compreensão do que é ouvido, não se possa ir além das 160 palavras por minuto. O que significa que para um leitor competente, ler um livro é mais rápido do que ouvi-lo. Este ritmo diferente está em parte relacionado com o tempo que demoramos a fazer a codificação, um processo cognitivo que armazena as novas memórias, para que recordemos aquilo que lermos ou ouvimos. “A atenção é uma parte crítica deste processo: sem atenção, a codificação não acontece e, sem codificação, não nos lembramos do que lemos ou ouvimos”, especifica Matthew Traxer.

E é aqui que a vantagem dos audiolivros se pode transformar no seu maior problema: fazer outras atividades ao mesmo tempo que se ouve um livro faz com que esta atenção se quebre. “Se alguém está a fazer multitasking, ao ouvir um livro perderá partes. O cérebro humano não é capaz de fazer várias tarefas ao mesmo tempo, em vez disso, alterna rapidamente entre as tarefas”, sublinha Arthur Markman. “Então, se alguém está a ouvir um livro enquanto faz outra coisa, perderá algumas palavras aqui e ali e vai ter de se esforçar mais para entender o que está a ser transmitido.” Além disso, “também não terá tempo para pensar muito sobre o que está a ouvir, o que limita a profundidade da compreensão.” Assim, ouvir livros parece ser uma experiência equivalente a lê-los, mas apenas se nos focarmos apenas nessa tarefa, como quando os lemos.

Por fim, e porque ler não é só aprender – onde fica o prazer? Sem surpresa, os dados mostram que, para os leitores tradicionais, nada se compara à satisfação de pegar num livro e ficar imerso nele, mas também que, para os fãs de audiolivros, a experiência de ouvir uma história é mais relaxante e aprazível. Contas feitas, a melhor opção para cada um é uma questão de gosto.