Valter Hugo Mãe

Os sentimentos na parede


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Deparei-me com os desenhos do Miguel Ramos à venda tão baratinhos no seu perfil de Instagram e alguma coisa começou por me enternecer sem demasiada explicação. O emaranhado suave das linhas em torno de uma palavra está enquanto fosso ou emanação? Tive a impressão dessa dupla e impossível coisa: tanto caímos para dentro da palavra quanto somos irradiados a partir dela e alastramos para todos os lados.

Porque haveria de me enternecer que um desenho estivesse inteiro feito por causa de uma pequena palavra, comum, sem aparato senão o ofício simples dos traços breves? Subitamente, essa palavra deixada como ilha mínima é a razão de tudo quanto acontece, semeia ou acende, espera. É peculiar o poder que adquire a frontalidade de uma qualquer emoção. Eventualmente, porque estamos disciplinados para nos moderarmos, escolhendo tanto quanto possível a secura da racionalidade, a franca ostentação de um vocábulo que aluda ao território da nossa vulnerabilidade é um imediato abalo. Lembra-nos, ou acusa-nos, de muito mais do que seria suposto.

Há tempos que acompanho o perfil do Miguel Ramos, a delicadeza das suas ilustrações, as suas árvores e pessoas poéticas, quase sempre azuis, feitas de uma melancolia bonita, até alegre, pacífica. Quis por várias vezes comprar algo. Ter comigo algo que pusesse a parede a fazer uma festa dessa alegria e paz. Desta vez, fiquei sem o poder adiar. Escolhi a “empatia” e o “amor-próprio”. Não entendo exactamente por que razão. Pela beleza do desenho, claro, mas porque haveria de juntar estas duas expressões de força vai escapar-me um pouco. Talvez me pareça sempre fundamental acreditar na construção com os outros, a atenção ao que maltrata quem nos rodeia, e julgo também que ninguém se capacita para nada sem auto-estima, essa necessária estrutura que nos faça estáveis e confiáveis, persistentes e com alguma noção de plano e destino.

Há um pouco de começo nisto de colocarmos na parede uma palavra de ordem que nos recorde a cada dia um certo sentido do esforço, um certo sentido da vida. Era como imaginava o início dos grandes compromissos. Até dos amorosos, se era verdade que corríamos a escrever os nomes das amadas nos cadernos, nas paredes, nos troncos das árvores. A palavra escrita passa a ser amuleto, coisa xamânica, vórtice para onde se precipitam as energias evocadas. Adoro a ideia de não ser mais o jovem de outrora mas viver disponível para começar algo. Ser ainda elástico, plástico, incompleto o suficiente para perspectivar uma aventura pelo mais improvável.

Estamos perto do fim do ano. Arrumo tralhas para preparar o Inverno, quando tenho sempre mais vontade de escrever. Nunca se abriu um Janeiro sem que eu quisesse muito prometer a mim mesmo uma qualquer maravilha nova. Desta vez, vejo nos desenhos do Miguel Ramos a nota inequívoca dessa força. Nem que para, mais uma vez, me iludir também.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)