Rui Cardoso Martins

Os namorados ladrões


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Ele por ela ia até ao fim do Mundo e depois voltava para trás. Aquilo entre os dois é sólido. Do casal, no entanto, o retrato mais completo que consegui no tribunal foi impreciso e intuitivo, ou nem isso. Disse o segurança da loja:

– Ela deu-lho a ele, não sei se era namorado, não faço ideia…

Oh, mas como as acções falam! O amor não é só palavras, claro que é muito feito de palavras – as mulheres até se apaixonam por palavras belas ressoadas em feias bocas -, mas quando é preciso agir é que o coração se põe mesmo a correr, levantando pó como um jovem cavalo.

O pó de ouro (mesmo ouro falso, ouro dos tolos) é valioso. No amor, a bijuteria faz-se jóia. No entanto, o segurança, tão vago na descrição do casal, lembrava-se desse dia com uma precisão maníaca. Já passaram dois anos e muitos ladrõezinhos que apanhou em flagrante no Centro Comercial Colombo, mas este não esquecerá jamais:

– Lembro-me perfeitamente desta situação. Perfeitamente!

E suspirou o segurança naqueles braços de cordames de nau, nas pernas grossas de castanheiro serrado e numa inesperada barriga de almofada.

Antes do segurança, o guarda da PSP que tomou conta do caso dera o quadro geral. Fora chamado ao centro comercial onde se encontrava já manietado o rapaz e a rapariga, que identificou pelos passaportes. Levou-os à esquadra, ele revistou o homem, uma colega da Polícia revistou a rapariga. Era ele quem tinha “os objectos furtados”.

– Ele tinha tentado fugir, mas entretanto interceptaram a rapariga e ele voltou para trás.

O rapaz podia fugir e ainda agora estaria a correr pelo Mundo com o seu passaporte, a ele não o apanhavam, sabe fugir pelos corredores envidraçados e inoxidáveis dos centros comerciais como os ratos nos labirintos de laboratório. Mas viu-a ser agarrada e voltou para trás. Entregou-se e, com ele, os motivos da coisa, o móbil do crime: os dois colares que ele trazia ao pescoço, já sem etiquetas ou embalagens, eram de mulher. Eram para ela.

– Lembro-me perfeitamente, disse o segurança. Eu estava a monitorizar pelo vídeo e vi este casal na zona da bijuteria. Ela tirou os artigos, uns colares. Ela deu-lhos a ele, não sei se era namorado, não faço ideia… ele tirou as etiquetas, pô-los ao pescoço e saíram da loja.

Aí já os esperavam o segurança e um seu colega, que chamara para “prestar apoio” (assim se diz).

– No entanto, eles começam a fugir. Eu caio e fico dois meses de baixa, sem poder trabalhar.

– Então é por isso que se lembra perfeitamente!, disse-lhe a procuradora contente.

– Exactamente, confirmou o segurança, que além do mais era careca e usava mocassins, terminando aqui a descrição.

– Estava a perguntar-me por que razão havia de se lembrar disto, acrescentou a procuradora num sobrolho policial.

– Fiquei com um grande hematoma no joelho… Dois meses sem trabalhar. Conseguimos aí, no entanto, apanhar a moça. E ele voltou para trás.

E o resto já sabem, menos o que também não sei. Não apareceram no tribunal e serão decerto condenados em multa por pequeno furto em co-autoria. Nem ela, nem ele, têm antecedentes criminais conhecidos. Usaram a técnica espectacular de não esconder nada, tudo à vista, pendurámos ao pescoço o que acabámos de roubar, sou homem mas uso colares coloridos de contas e ouro fingido, foi a minha namorada [namorados?, não dou certezas] que me ofereceu, o que é que alguém tem a ver com isso?

O talão dos colares dizia, com precisão, que valiam 11,90 euros. Onze euros e noventa cêntimos. Bijuterias.

Jóias, porque ele voltou para trás e entregou-se e algemaram-lhe as mãos, porque o amor vale muito mais.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)