Germofobia. Quando os germes não saem da cabeça

A compulsão com a higiene, com a limpeza constante, significa manusear substâncias potentes

O medo exagerado de bactérias, vírus, parasitas, de todos os microrganismos invisíveis, tem nome. Germofobia é o receio irracional de ficar contaminado que provoca obsessão pela limpeza, compulsão pela higiene. É uma situação patológica que limita a liberdade e trava a felicidade. Abre feridas e deixa marcas.

Lavar as mãos uma e outra vez, vezes seguidas e vezes sem conta, com sabão ou sabonete e com álcool para desinfetar ao expoente máximo da higiene. Banhos de horas e horas para exterminar qualquer bactéria. Esfregar até fazer ferida. Coçar até abrir fissuras. A obsessão pela limpeza da casa, desinfetar tudo o que se vê para matar tudo o que não se vê – maçanetas das portas, banca da cozinha, cadeiras e prateleiras, o lavatório e a sanita, a casa de banho do chão ao teto. Não um dia por semana, todos os dias. Uma e outra vez, sem parar. Não tocar naquele objeto porque estará infestado de micróbios. Não apertar a mão de alguém por receio de uma qualquer doença infetocontagiosa. Restringir o contacto, o toque, o abraço, o beijo, com pânico dos vírus e das bactérias. A germofobia é um medo patológico que afeta o corpo e a mente. E o impacto não é leve.

“A germofobia é um medo exagerado, excessivo, muitas vezes injustificado, de germes, vírus, micróbios, a tal ponto que é acompanhado pela compulsão com a higiene e um receio terrível de ser contaminado”, explica Ana Pedrosa, dermatologista. Este medo patológico de germes, descrito como germofobia ou misofobia, paira na cabeça, manifesta-se na pele.

A sensação de que há bactérias em todo o lado, à espreita de lançarem as garras e contaminarem o corpo. Ideias que não se controlam, que não param. É um distúrbio que pode descambar em comportamentos obsessivo-compulsivos. “O grande problema nesta perturbação é que as pessoas começam a acreditar no processo de contaminação dos espaços porque alguém veio da rua e através da sua roupa trouxe germes para dentro de casa, porque alguém cumprimentou, andou num autocarro e nesse autocarro poderia andar alguém que esteve em sítios contaminados”, refere Pedro Brás, psicoterapeuta da Clínica da Mente. É como uma pescadinha de rabo na boca em que o receio da contaminação não vai embora com uma esfregadela. “Há pessoas que lavam as mãos com lixívia ou com álcool e com isso fazem enormes feridas, tomam banhos de quatro horas, lavam as mãos durante horas, limpam a casa constantemente, não tocam em nada ou em alguns objetos particulares, muitas pessoas não saem de casa com medo de serem contaminadas”, adianta o psicoterapeuta.

António Mota Miranda, infeciologista no hospital Trofa Saúde Boa Nova, em Matosinhos, fala desse medo patológico dos microrganismos, desse receio excessivo da contaminação, do contágio, da infeção. A germofobia é uma situação patológica, física e orgânica, salienta, com sintomas que os livros científicos descrevem. “Palpitações, náuseas, dor no peito, diarreia, sudação excessiva”, enumera. Como transtorno de ansiedade que é, há inquietação e dificuldade em relaxar com o contágio a girar na cabeça. Os comportamentos são fáceis de entender. Excessiva desinfeção, excessiva lavagem das mãos, excessiva higiene, tudo excessivo porque o perigo de contaminação está em toda a parte.

Coça, limpa, desinfeta

A compulsão com a higiene, com a limpeza constante, significa manusear substâncias potentes. “A utilização de produtos químicos à base de álcool, detergentes, antisséticos, tudo o que possa eliminar os germes do ambiente e da pele”, especifica Ana Pedrosa. Lavagem atrás de lavagem e o resultado manifesta-se. “Aparecem eczemas, inflamações na pele, muitas vezes com comichão, surgem pequenas fissuras que são dolorosas”, diz a dermatologista. Esfrega, coça, limpa, desinfeta. Sem parar. São feridas que surgem, marcas e manchas, descamações, fissuras em várias partes do corpo.

Se a mente não sossega e entra num círculo vicioso de que tudo pode ser contagioso, de que tudo está contaminado, o corpo sofre e a saúde ressente-se. “Quem tem esta perturbação, foge constantemente do contacto com superfícies e, acreditando que estão contaminadas, limpam-nas constantemente, nunca acreditando que eliminaram os germes por completo”, constata Pedro Brás.

A germofobia é uma história complexa. Ana Pedrosa junta medo, comportamentos sem justificação, irracionalidade, para falar desta fobia que ultrapassa os limites do bom senso. “Evita-se andar de transportes públicos, espaços com maior densidade populacional, tocar em determinados objetos.” E por aí fora.

Há uma linha que separa o que é razoável e o que é irracional. A germofobia excede o que a razão consegue explicar. Pedro Brás faz as devidas distinções entre comportamentos normais de higiene e limpeza e o que ultrapassa essa fronteira. O medo que se instala em caso de germofobia e tudo o que daí advém. “As pessoas têm esses comportamentos para aliviar o pânico que sentem quando pensam que podem estar contaminadas, e enquanto este pensamento não sair, não param os comportamentos de limpeza, num ciclo interminável”, observa o psicoterapeuta. É a louça lavada e lavada novamente, os talheres passados a pente fino.

Se tudo está contaminado, ninguém escapa. A lógica é mais ou menos esta. Por isso, gera ansiedade, extravasa a componente física, entra pelo foro da saúde mental, pelos caminhos da psicologia e da psiquiatria. E as consequências não são leves. “Evita-se o contacto social, cumprimentar, por exemplo, recusa-se partilhar alguns objetos”, comenta António Mota Miranda. “É uma situação patológica que provoca alterações e tem repercussões na qualidade de vida”, acrescenta. É a ansiedade, é o transtorno. Basta um passo para o isolamento e para a depressão.

É um medo que angustia. O visual não fica intacto e, por isso, há vergonha, menos vontade de sair de casa. Como uma bola de neve. “Esta perturbação mental é das mais limitadoras à felicidade das pessoas. Quem se sente contaminado por germes, vírus ou bactérias, ou simplesmente por sujidade, tem uma necessidade imensa de se limpar e não tocar em superfícies supostamente contaminadas. Estas necessidades geram comportamentos verdadeiramente limitadores da liberdade e felicidade das pessoas que sofrem”, sustenta Pedro Brás.

Uma coisa é germofobia, outra coisa é a exposição regular a produtos desinfetantes por força da atividade profissional, como técnicos de saúde ou funcionários de lares de idosos. Nestes casos, a exposição quase diária exige conta e medida na utilização de produtos químicos, na desinfeção quer seja de mãos, quer seja de superfícies. “Nestas situações, há uma prevalência de dermatites ocupacionais pelo uso frequente de desinfetantes e as mãos são, muitas vezes, afetadas pela utilização destes agentes químicos”, afirma a dermatologista Ana Pedrosa. A pele não fica igual precisamente por esse contacto que pode envolver derivados do petróleo e componentes ácidos.

Educação, informação, prevenção

O Dia Mundial da Lavagem das Mãos, instituído pela Organização Mundial da Saúde e celebrado ontem, 15 de outubro, surgiu para chamar a atenção para a importância desse gesto na prevenção de doenças e no salvar vidas, tanto mais que a palavra pandemia ainda está bem fresca na memória do Mundo. A pensar nisso, o tema deste ano transmite uma mensagem a condizer: “O nosso futuro está nas nossas mãos – avancemos juntos”.

A pandemia é chamada para a conversa na medida em que acentuou as reações do uso de desinfetantes e potenciou o medo de um vírus invisível, neste caso da covid-19. Salientou a germofobia, considera Ana Pedrosa. Na era pré-pandemia covid-19, o medo exagerado de bactérias era notado sobretudo em jovens e mulheres adultas, agora a prevalência do sexo feminino e masculino é semelhante, sobretudo na faixa etária dos 30 aos 50 anos. Com a pandemia, segundo Ana Pedrosa, há mais adolescentes e jovens em sofrimento, com manifestações de germofobia.

Falar, conversar, esclarecer, tirar dúvidas. Para António Mota Miranda, a educação é um dos aspetos mais importantes neste assunto. Os microrganismos existem, não há nada a fazer, não vão desaparecer, nem todos são inimigos altamente perigosos. Nem todos são bons, nem todos são maus, há alguns que até são necessários. Se existem, é preciso viver com eles. “Vivemos num Mundo com muitos microrganismos, muitos germes, que fazem parte do nosso dia a dia, não sendo causadores de doenças.” Há riscos, é certo, há perigos, sim, portanto, é necessário falar disso. “Informar as pessoas dos modos de transmissão dos microrganismos”, aconselha o infeciologista. Desta forma, tenta-se que esse medo excessivo não cresça, nem transtorne o dia a dia. Escutar quem sabe, reunir informação, saber contextualizar e tirar conclusões. “E saber qual é o motivo para esse medo”, frisa o especialista. I r à raiz da questão. Alguma experiência negativa no passado, na infância, na adolescência. Um acontecimento traumático que exponenciou o medo a germes. Crenças que levam a práticas de limpeza e higiene que expliquem, embora sem encaixe com a realidade, o modo de pensar, de estar, de fazer. O que está por trás dessa obsessão com a higiene.

O tratamento é complexo e envolve uma abordagem multidisciplinar. Não há um remédio para prescrever, nem um germe que possa ser identificado para que seja eliminado de vez, assunto fechado, caso resolvido. Não é assim. “O tratamento não é só dermatológico, não devemos pensar nesta patologia unicamente do ponto de vista físico quando há algum traço obsessivo-compulsivo”, avisa Ana Pedrosa. Uma maior suscetibilidade às infeções também não ajuda, a barreira cutânea protetora da pele fica danificada com tanta obsessão pela higiene. E tudo pode acontecer.

Consultar um especialista na pele, sim, porque há feridas e fissuras, comichão e coceira, mas também é preciso procurar ajuda psicológica e psiquiátrica. Atuar a montante, de acordo com Ana Pedrosa, ou seja, “na prevenção da compulsão.” Há aliás, lembra a dermatologista, um parente da germofobia. “Uma crença, um delírio, que se está infestado por parasitas, micróbios, bactérias.” Pensa-se em piolhos e coça-se o couro cabeludo até fazer sangue. Pensa-se em sarna e mete-se as unhas no corpo para coçar até a sensação, fruto da mente, desaparecer – se é que desaparece.

É, pois, importante procurar ajuda especializada na área comportamental, na psicologia e na psiquiatria. E a prevenção faz sempre diferença. “Atitudes preventivas, limpeza sem ser obsessiva, o viver normal como medidas de higiene normais”, concretiza António Mota Miranda. Com as necessárias precauções, até do ponto de vista comportamental, num mundo de bactérias e germes para não correr riscos de contrair doenças infetocontagiosas. O médico António Mota Miranda recorda, a propósito, os avanços da vacinação que já erradicaram algumas doenças. Mudando-se o chip, percebendo-se a origem, arrumando a cabeça, é possível não deixar que a germofobia vire a vida de pernas para o ar.

Família e amigos. Vontade e compromisso

Ninguém é igual a ninguém. A perturbação obsessivo-compulsiva por contaminação não é vivida e sentida da mesma forma. “Nesta, como em outras perturbações, cada pessoa vive os seus medos e limitações de forma particular, ou seja, ninguém sofre exatamente da mesma forma nem tem exatamente os mesmos medos”, sublinha Pedro Brás. O medo é, na verdade, uma emoção normal, que protege de eventuais agressões. “Todos temos medo de sermos contaminados por bactérias ou outros seres que, apesar de não serem visíveis, sabemos que existem e que podem prejudicar a nossa saúde”, observa o psicoterapeuta. Certo. A questão é se o medo é tal que limita a vida e o bem-estar.

As causas para os medos excessivos estão identificadas. Pedro Brás aponta duas. “A primeira é a compreensão errada de um determinado fenómeno. Quando temos crenças erradas, fazemos julgamentos errados e uma perceção da realidade errada pode gerar comportamentos de medo mais excessivos. Mas quando estamos a falar de fobias, falamos de medos irracionais, medos que não se controlam e que, de alguma forma, fogem à nossa capacidade de raciocínio.” É aquele pânico que não se explica de forma racional.

De qualquer forma, o passado deixa marcas e um trauma não se esquece. Aquele momento em que uma pessoa se sente contaminada por algum germe e entra em pânico só com essa ideia? Acontece e sem justificação de suporte. E das duas uma. “Estes ataques de pânico podem acontecer de forma espontânea ou como uma reação a uma má e excessiva perceção momentânea”, realça o psicoterapeuta. Basta um pensamento e é o terror, uma perturbação emocional difícil de controlar.

A germofobia limita a vida. Como tratar? “Só a psicoterapia pode ajudar as pessoas de forma eficaz a bloquear os medos traumáticos que tenham e a parar este ciclo de pensamento-medo”, responde Pedro Brás. O processo é longo, mas fundamental em nome da felicidade. “Sem tratamento psicoterapêutico, o sofrimento pode prolongar-se por longos anos”, alerta.

A família e os amigos têm um papel importante, pelo apoio emocional, pela compreensão e empatia, pelo acompanhamento nesta perturbação difícil de perceber. “A família tem ainda uma função mais importante pois, reconhecendo as dificuldades da pessoa, pode procurar ajuda por ela e incentivar quem sofre a pedir ajuda.” Pedro Brás é claro. “Os tratamentos de psicoterapia são profundos e transformadores, mas só podem ser feitos com a vontade e o compromisso de quem sofre.” Duas palavras-chave: vontade e compromisso.