Os filhos da guerra
Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.
Gostava de não escrever sobre a guerra, mas é quase impossível, quando, a cada segundo que passa, há mais uma criança refugiada. Gostava de não escrever sobre e guerra, mas existem planos na esfera de Putin para a Ucrânia semelhantes aos de Hitler.
“Não há pior mal do que a guerra e como ela afeta as crianças.” As palavras são de Audrey Hepburn, que assistiu e sofreu os horrores da II Guerra Mundial antes de se tornar um dos mais importantes ícones de beleza e de elegância mundiais. Tinha dez anos quando a Alemanha ocupou a Holanda. Não era ainda Audrey, mas Adriaantje, uma criança que cresceu entalada entre a fome e o medo, sob opressão da ocupação nazi. Durante o conflito, participou em espetáculos clandestinos para angariação de dinheiro destinado às forças de resistência. Dançava nas “blackout nights”, nome dado aos espetáculos à porta fechada com as janelas tapadas, num tempo em que viver escondido era um modo de vida. No final, a assistência não batia palmas, limitando-se a passar um chapéu de mão em mão, na cidade de Arnhem, na Holanda. A menina que sonhava ser bailarina, participou ativamente na resistência holandesa, distribuindo panfletos clandestinos que escondia dentro das meias de lã ao volante da sua bicicleta.
A menos de cem quilómetros, outra criança da mesma idade vivia escondida, ocupando os dias na escrita afincada de um diário que conheceu o Mundo, mas ela não. Em 1968, no auge da sua carreira, Audrey foi convidada para protagonizar Anne Frank e recusou. Sentia demasiada proximidade com uma realidade que ela queria que permanecesse no passado. Talvez sofresse da síndrome do sobrevivente, Audrey escapou aos terrores da guerra, Anne não. A guerra não a apanhara no passado. Ao longo de toda a sua vida, fez questão que não a apanhasse no presente.
Quando foi descoberta pela máquina de sonhos de Hollywood, nunca se deixou deslumbrar. O seu filho Dotti conta que só durante a adolescência se apercebeu que a mãe era uma estrela quando por acaso encontrou bobines dos filmes no sótão. Comoveu-se com as personagens ingénuas e alegres, cheias de brilho e de graça. A mãe não lhe contava histórias de Hollywood. Em vez disso, relatava-lhe os episódios da sua infância, para que ele nunca esquecesse que um dia a vida pode mudar, e lia-lhe o diário de Anne com lágrimas nos olhos.
Durante os cinco longos anos da ocupação nazi, viu uma criança ser arrancada à mãe por soldados e atirada a uma fogueira, assistiu a fuzilamentos sumários, caminhou ao lado de corpos despedaçados nas ruas, perdeu um tio às mãos do inimigo. E, no entanto, sempre que a vemos em filmes, a ouvimos em entrevistas, ou a discursar numa cerimónia dos Oscars, é tudo luz, alegria, doçura e paz. Nos últimos anos de vida, foi Embaixadora da Boa Vontade da Unicef, numa época em que ainda não era moda entre as estrelas dar a cara por causas humanitárias. Apenas a princesa Diana conseguiu suplantá-la mediaticamente, décadas mais tarde, quando pegou na mão de um doente de SIDA num tempo em que não estava estudado o grau de contágio do HIV.
Gostava de não escrever sobre a guerra, mas é quase impossível, quando, a cada segundo que passa, há mais uma criança refugiada. Gostava de não escrever sobre e guerra, mas existem planos na esfera de Putin para a Ucrânia semelhantes aos de Hitler. Paralelamente, assistimos a histórias de horror que revelam o pior do ser humano: mulheres traficadas e violadas, crianças desaparecidas, seres indefesos que vão render dinheiro para a prostituição, a venda de órgãos e a escravatura.
Quando o conflito terminar, a Europa não terá mãos a medir para contar os filhos da guerra.