Operação Nariz Vermelho. A arte e o poder dos doutores palhaços

A Operação Nariz Vermelho faz 20 anos e o seu sonho mantém-se: visitar todas as crianças em todos os hospitais do país. É um trabalho que exige ouvido fino, olhos apurados, corpo elástico. Entrega de uma equipa profissional que se move em contextos duros, vulneráveis. Esta é uma história de amor. Esta é uma missão transformadora.

Augusto Nhaga tinha três anos quando entrou no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. Noma, doença rara, deteriorava-lhe os tecidos faciais de um lado do rosto. A estadia seria demorada, demasiado prolongada. Cinco anos seguidos numa primeira fase, alta por pouco tempo, recaída, mais cinco anos internado com os pais e o irmão num outro país, num outro continente, numa pequena vila da Guiné-Bissau.

Assistiu aos primeiros passos da Operação Nariz Vermelho (ONV). Participou em peças de teatro e de circo, foi rei mago, ilusionista, malabarista. Percebeu que o Sol era muito maior, que havia mais mundo além das paredes do hospital. Os primeiros doutores palhaços faziam magia. “Foram-me incutindo aquele espírito de uma vida mais leve, menos sombria. Tinha muito mais vontade de descobrir o que era o Mundo além daquele. Havia mais sol do que aquele que entrava nos corredores do hospital”, recorda.

Augusto aterrou em Portugal ao abrigo de um protocolo com a embaixada da Guiné, havia que travar a dimensão do problema, da sua doença, o seu país não tinha condições. “Conhecia o hospital como a palma da minha mão, era a minha casa, a minha família.” Viu muitas crianças a entrar e a sair, ele a ficar. Beatriz Quintella, Bia como lhe chama, fundadora da ONV, sempre por ali. “O meu mundo era aquele, não tinha noção de como era o mundo exterior.” E, de repente, aquele lugar tornava-se menos triste. “Maquilhavam-se, pintavam o nariz, iam para os corredores fazer palhaçadas, e a gente ria-se. A Bia fazia ensaios teatrais connosco, levava o teatro até nós para sermos os protagonistas. Aquelas pequenas horinhas faziam toda a diferença.” Imaginavam e construíam histórias em conjunto, um dia chegaram a ir ao teatro fora do hospital. “Sentia uma esperança maior do que era o Mundo, que tinha muito mais para descobrir, muito mais para vivenciar fora do hospital”, conta.

Os doutores palhaços não são voluntários, são profissionais, têm formação na área e treinos específicos para o ambiente hospitalar. Atuam em dupla, têm nomes engraçados, articulam-se com os profissionais de saúde
(Foto: Paulo Maria/ONV)

Marta Costa é a doutora Popovna. Tem 34 anos, é de Santo Tirso, mestre em Ensino do Desporto e Educação Física, formada em Teatro, especialização em palhaço. Atriz, palhaça, improvisadora, doutora palhaça há cinco anos. Margarida Fernandes é doutora palhaça há mais tempo, há dez anos. É a doutora Francesinha. É atriz, tem 47 anos, é do Porto, licenciada em Ciências da Comunicação, tem formação na ACE – Academia Contemporânea do Espetáculo, vertente de Interpretação. Elas contam como é vestir a pele de doutoras palhaças. E é um misto de emoções.

Margarida, a doutora Francesinha, lembra-se bem daquela visita com a enfermeira Compressa ao internamento do Hospital de São João, no Porto. No corredor, escutam uma voz de uma porta entreaberta. É um aviso. “Aqui escusam de vir, já sabem o que a casa gasta.” Dentro do quarto, um menino de quatro anos, com medo de palhaços, sentado na cama com o pai ao lado. A doutora e a enfermeira ficam no corredor a tocar, a cantar, a dançar. “Entretanto, pedimos licença para entrar, quantos passos poderíamos dar. O menino disse três. Demos um, mas não sabíamos contar direito. De seguida, pedíamos licença e assim sucessivamente, ora não sabíamos contar, ora tropeçávamos, ora atrapalhávamo-nos uma com a outra”, descreve Margarida. O menino ria e ajudava a contar os passos a dar. “Até que gritou, para espanto do pai: ‘Podem entrar!’.”

A primeira vez que vestiu a pele de doutora Francesinha foi no IPO do Porto. “Ficou-me na memória a emoção de ali estar, a adrenalina a percorrer cada milímetro do meu corpo, os encontros alegres com as crianças.” Margarida, que sempre quis ser doutora palhaça – ser médica não era uma possibilidade pelas notas a Matemática – não esquece esse momento. “Essa recordação de alegria pura, genuína, extravasante foi de tal maneira forte, como um choque, que apagou o resto da fotografia. E do dia.”

Formalmente constituída a 4 de junho de 2002, celebra o aniversário a 1 de junho, Dia Mundial da Criança. Está em 17 hospitais, visita 51% das camas pediátricas do país, tem 33 doutores palhaços
(Foto: Paulo Maria/ONV)

Marta Costa recua ao seu primeiro dia, fez dupla com a doutora Francesinha. “Senti que, se pudesse, colocaria vários olhos em várias partes do meu corpo para conseguir observar tudo e todos, ler o ambiente, não perder de vista a minha colega, olhá-la sem deixar de ver cada pessoa com quem nos cruzámos”, confessa. A sensação de transformar aquele ambiente num lugar leve e com espaço para rir, a reação das crianças como se ela fosse um desenho animado que saltava do ecrã para a realidade. E, no final do dia, a certeza de querer voltar outra vez. “Estou nesta missão porque acredito que a arte faz bem à saúde das pessoas, alimenta e nutre”, diz Marta.

O ofício, as técnicas, os truques

Fernando Escrich é diretor artístico da ONV desde janeiro de 2018, formado em Teatro Realista, com especialização em Comédia dell’Arte, fez parte dos Doutores da Alegria, no Brasil, durante 20 anos, doutor palhaço, coordenador artístico em São Paulo, formou ainda, em 2014, a Orquestra Modesta, orquestra musical para palhaços. Chegou a Portugal com maturidade e bagagem artística e emocional. E vontade de trabalhar.

Os doutores palhaços da ONV, 33 neste momento, não são voluntários, são artistas de profissão com formação em palhaço e formação adicional específica para atuarem em contexto hospitalar. “Além de assumirem a responsabilidade de visitar o mesmo hospital, nos mesmos dias e horários, e em residências fixas, duas vezes por semana durante seis meses, ainda se dedicam aos encontros artísticos na sede da ONV duas vezes por mês”, adianta Fernando Escrich. É necessário treino específico e formação intensiva. “Felizmente, os doutores palhaços têm a possibilidade de, através do olhar, da escuta e da perceção, entrar num quarto e verem apenas a criança e as suas necessidades reais e não a doença ou a situação que a leva ali. Provocam o lado saudável dessa mesma criança, que a hospitalização por vezes ‘apaga’ um pouco, mas que nunca desaparece por completo.” “Uma criança continua a ser criança, mesmo estando doente, quer brincar, estudar, questionar as coisas que despertam curiosidade e ser protagonista da sua própria história, e é esse universo que os doutores palhaços procuram conquistar para vivenciar a alegria com ela”, realça o diretor artístico da ONV.

“Uma criança continua a ser criança, mesmo estando doente, quer brincar”, reconhece Fernando Escrich, diretor artístico da Operação Nariz Vermelho
(Foto: DR)

O contexto é duro, pesado, de doença, de vulnerabilidade. De medos e angústias. A pele de palhaço e o nariz vermelho ajudam. “É o que nos permite ter um olhar leve, focado no jogo, subvertido da realidade, poético, brincalhão, que vê os detalhes para além do quotidiano e permite o absurdo”, considera Marta Costa. Escapar ao que é pesado. “O palhaço tem várias nuances, mas aí é que está o desafio, escolher que tipo de ferramentas utilizar e que nuances são justas para cada situação.”

Atuar em dupla ajuda a lidar com a adversidade, sublinha Margarida Fernandes. “Este suporte humano e artístico é muito importante; se ele não existisse, o desgaste seria outro”, admite. Ao entrar no quarto, tem sempre companhia. É um trabalho de equipa. “Sei que não estou sozinha e tenho alguém tão ridículo como eu do meu lado.” As lentes artísticas são como um escudo, garante. “O palhaço é uma criatura atenta, de ouvidos e olhos apurados, de corpo elástico e de espírito conectado com o ambiente, ele está altamente capacitado para estar em ambientes adversos.” Então Margarida procura espaços para brincar, jogar, encontrar a criança, dar-se de corpo e alma. “E esta procura detetivesca toma a dianteira relativamente à realidade. Não existem fórmulas, existe um ouvido fino e uma presença disponível (com várias técnicas artísticas como recurso)”, acrescenta.

Augusto Nhaga não tinha os pais no hospital, os enfermeiros mais próximos eram o seu amparo, o seu colo, bem como os doutores palhaços. “Conheci os responsáveis pelo projeto numa fase inicial. Na altura, não tinham um sítio para se maquilharem, não era como é agora”, compara. “Valeu mesmo a pena o esforço que a Bia fez para este projeto ir para a frente e ter sucesso”, comenta. Facilita o processo dos profissionais, dos pais que se sentem mais tranquilos, mais calmos. “Os miúdos que gostam de palhaços sentem-se mais seguros, como se fossem heróis.” Augusto saiu do hospital no dia em que fez 14 anos. Não voltou à Guiné, ficou em Portugal. Está a escrever um livro sobre a história da sua vida e quer criar uma associação para ajudar quem sofre de problemas do rosto, boca e olhos. Bia, fundadora da ONV em Portugal, dá nome a um jardim do Hospital Dona Estefânia. “Para mim, foi muito importante, foi ali que muita coisa começou, foi uma bonita homenagem a uma equipa fantástica.”

Ativismo social, união, comprometimento

A ONV celebra 20 anos de existência. São 20 anos, 17 hospitais, mais de 53 mil crianças visitadas todos os anos (cerca de 51% das camas pediátricas dos hospitais públicos do país), 33 doutores palhaços, 19 profissionais no escritório que operacionalizam toda a atividade. Vive de campanhas de angariação de fundos, da ajuda da comunidade, do apoio de entidades privadas e de alguns organismos públicos, nomeadamente câmara municipais.

Luiza Teixeira de Freitas é presidente da ONV há dois anos e meio, mas acompanhou o início dos inícios, foi a sua mãe, Beatriz Quintella, que fundou a ONV em Portugal em junho de 2002. Ligação emocional, cordão umbilical que não se corta, mesmo depois da morte da mãe em 2013. A ONV é uma história de amor. “É uma história de amor – à criança e ao humor – mas, além disso, é uma história de muita dedicação construída pelas crianças, famílias e profissionais do hospital com quem nos cruzamos, em conjunto com todas as pessoas que trabalham na ONV”, observa. “O nosso maior legado é ter nas nossas mãos um projeto fundamental e transformador da sociedade.” É também um motivo de orgulho. “Abraço o projeto porque acredito na arte como pilar essencial da nossa sociedade e no seu papel fundamental na saúde.” O grande sonho da ONV mantém-se de pé: visitar todas as crianças em todos os hospitais do país.

“O nosso maior legado é ter nas nossas mãos um projeto fundamental e transformador da sociedade”, assegura Luiza Teixeira de Freitas, presidente da ONV
(Foto: DR)

Não é um percurso linear. “São 20 anos de muitas histórias, de alegrias, momentos inesquecíveis, altos e baixos e alguns caminhos mais difíceis, mas o balanço é, sem dúvida, muito positivo. A cada ano cumprimos a nossa missão com foco e entrega, e é isso o mais importante”, refere a presidente da ONV. A dedicação, de facto, compensa. Tal como o poder transformador do palhaço num ambiente tão complexo. E mais ainda. “Sentir que chegamos à criança e também a várias pessoas à sua volta que precisam destes respiros, de momentos de leveza e alegria”, sustenta Luiza Teixeira de Freitas.

2022 é um ano de celebração de duas décadas de atividade, depois de um tempo longe das pediatrias por causa da pandemia. “A melhor forma de celebrar os 20 anos da ONV é agradecer à comunidade todo o apoio e confiança demonstrados ao longo deste tempo, que nos permitiu ir crescendo e solidificando a nossa posição”, partilha a presidente da ONV. Celebra-se com o espetáculo musical “Compasso de palhaço – Pequena sinfonia das horas vagas”, que vai percorrer os 17 hospitais, com uma exposição comemorativa, culminado com várias apresentações para o público em geral no final de outubro.

Fernando Escrich chegou e conheceu novos artistas, outras formações e linguagens do palhaço, uma nova cultura e forma de fazer humor. Uma nova terra, uma casa nova, novos amigos. “Mas aquilo de que mais me orgulho é de trazer mais voz e consciência da missão à equipa de artistas, que é muito unida, responsável, eficiente e comprometida com o trabalho nos hospitais e com os projetos artísticos que criamos em conjunto”, pormenoriza.

Para Margarida Fernandes, ser doutora palhaça “é a síntese entre arte e ativismo social”, é poder fazer a diferença com um trabalho artístico. Após cada visita, a doutora Francesinha regressa às suas roupas, anda pelo hospital de forma discreta em direção à saída, pensa que foi outra pessoa que esteve por ali, naqueles quartos, naqueles corredores. E sabe que quer mesmo estar ali, com as crianças, cuidadores, famílias. Com o máximo respeito. Com sorrisos e gargalhadas.

Luiza Teixeira de Freitas guarda histórias de crianças que a marcaram, olhares de pais que se transformaram na presença dos doutores palhaços, a gratidão genuína dos profissionais de saúde. Não consegue escolher o momento mais especial, mas conta a história de uma mãe de uma criança visitada pelos doutores palhaços. “Quando disse ao seu filho que teria de retornar ao hospital, recebeu de volta um sorriso de felicidade e a pergunta: ‘Aquele lugar onde há palhaços?’.” Sim, esse mesmo.