Onze sombras sobre o Mundial do Catar

O brilho do Mundial que arrancou este domingo, dia 20 de novembro, em Doha empalideceu nos últimos anos face a todas as polémicas que o envolveram. Mais de seis mil trabalhadores mortos na construção das infraestruturas, corrupção, desrespeito pelos direitos humanos. Nunca um país gastou tanto dinheiro para receber a principal competição de seleções. E nunca foi tão contestado. O Catar 2022 começa fora de jogo.

Candidata derrotada na corrida à organização do Mundial de 2022, a seleção dos Estados Unidos foi ironicamente a primeira a aterrar no Catar. O país do emirado, onde dinheiro não falta, oferece (quase) tudo aos viajantes, entre bom tempo e boa gastronomia, locais de lazer e boas praias. Porém, houve algo que a riqueza não conseguiu comprar: o respeito. Em 22 edições, a competição nunca arrancou com tanto azedume e aversão ao país organizador devido, sobretudo, à questão dos direitos humanos. Este domingo, dia 20 de novembro, às 16 horas, quando a bola começou a rolar no Catar-Equador, o Planeta não sabia se devia estar feliz, pelo começo do campeonato, ou triste, pelo contexto em que a prova está mergulhada. A equipa americana chegou com um sorriso amarelo. E não há como culpá-la por esse sentimento.

1. Ligações perigosas

Até hoje, a escolha do Catar como país organizador do Mundial gera intensa controvérsia e os indícios de corrupção são praticamente indesmentíveis. A 2 de dezembro de 2010, o então presidente da FIFA, Joseph Blatter, anunciou, sorridente, que o Médio Oriente receberia, pela primeira vez, a competição. A candidatura catari derrotou os Estados Unidos por seis votos de diferença (14-8). Entre os 22 elementos do Comité Executivo que participaram nessa votação, metade deixou de exercer funções ao longo dos últimos anos face à acusação de terem recebido dinheiro em troca do “sim”, para além de outras acusações extra Mundial, como desvio e lavagem de dinheiro no interior do organismo.

A França teve um papel central e com repercussões no mundo do futebol. Num encontro em 2009, Nicolas Sarkozy, ex-presidente francês, terá pedido a Michel Platini, que na altura liderava a UEFA, para refletir sobre os interesses gauleses no Catar. Platini, que preferia inicialmente os Estados Unidos, alterou a intenção de voto e, dois anos depois, o dinheiro asiático entrou em força em Paris: o Qatar Sports Investments comprou o PSG, o grupo de media Lagardère passou a ser controlado por uma empresa do Médio Oriente e foi fundado o BeIn Sports. Possivelmente não há coincidências.

Em 2010, Joseph Blatter anunciou que o Médio Oriente receberia pela primeira vez um Mundial de futebol
(Foto: Walter Bieri/EPA)

Prejudicados na corrida à organização da prova, os Estados Unidos desencadearam um processo judicial, que ainda corre, para apurar a verdade. Cerca de 50 dirigentes, do organismo que superintende o futebol mundial, foram detidos para interrogatório, não só sobre a competição que arrancou este domingo, dia 20 de novembro, mas também sobre a atribuição do Mundial de 2018 à Rússia. Muitos responsáveis da FIFA foram afastados devido ao que Joseph Blatter chamou de “operações negras” nos bastidores e de espionagem às candidaturas rivais. Sim, o Catar terá chegado a esse ponto.

2. Gastos das arábias

Colocar de pé as infraestruturas para o Mundial teve, por baixo, um custo de 220 mil milhões de euros. É, de longe, a prova mais cara de sempre. Além de oito estádios, praticamente construídos de raiz e com todas as comodidades, rasgaram-se estradas e ergueram-se parques e hotéis, uma rede de metro e de autocarros, ciclovias, vias pedestres, obras megalómanas que resultaram num orçamento monstruoso.

Entrando em comparações, o Mundial de 2018 custou cerca de 20 mil milhões de euros à Rússia. O campeonato no Brasil, em 2014, teve um orçamento de oito mil milhões. Gotas de água perante a magnitude árabe. Em tempo de vacas magras, devido à pandemia e à atual guerra na Ucrânia, o orçamento previsto (220 mil milhões) subiu para valores desconhecidos já que, entre outras razões, a covid-19 obrigou à paragem das obras e, nos últimos meses, o custo de vida subiu exponencialmente. Nada que tenha tirado o sono aos sheiks, acusados de terem gasto demasiado dinheiro numa simples prova de futebol.

O Catar conheceu mais de uma década de obras e de investimentos milionários
(Foto: Adrian Dennis/AFP)

Se na Rússia, há quatro anos, Vladimir Putin mostrou o poderio do seu país, a vontade do emirado em fazer publicidade a si mesmo e à sua condição de potência absoluta do petróleo e do gás multiplicou os gastos. E muito. A climatização dos estádios, estudada durante anos por engenheiros e arquitetos, é apenas a ponta do icebergue de uma prova em que o dinheiro nunca foi um problema.

3. Um país sobrelotado

No Catar, os habitantes estão muito entusiasmados por acolherem a competição, mas há algo que não lhes sai da cabeça: como é que o seu país, com 2,5 milhões de habitantes, vai receber em poucas semanas mais de 1,5 milhões de visitantes? Na verdade, não receberá todas as pessoas. Uma boa parte ficará hospedada no Dubai e em Abu Dhabi, a 650 e a 550 quilómetros, respetivamente, e viajará de carro ou de avião para a sede do Mundial na véspera ou mesmo no dia dos jogos das suas seleções. As companhias aéreas disponibilizam mais de meia centena de voos diários entre esses destinos, a preços muito convidativos, o que compensa nas contas finais das deslocações.

Já o Catar criou uma espécie de feriado nacional de cerca de um mês para agilizar o dia a dia da competição. As escolas encerraram há duas semanas, para suavizar as horas de ponta, as obras pararam, inúmeras vias foram fechadas ao trânsito para permitir a avalanche de turistas e as praias já estão cheias. Face à paragem quase total dos serviços, os residentes foram obrigados a gozar férias e uma quantidade significativa de imigrantes a trabalhar no emirado foram “convidados” a regressar a casa, para abrir espaço aos visitantes. A imprensa alemã revelou mesmo que alguns foram expulsos, numa clara violação dos direitos humanos.

(Foto: Martin Divisek/EPA)

Preocupadas com a sobrelotação, as autoridades cataris tentam por todos os meios tornar o local apetecível, beneficiando da temperatura registada nesta altura do ano e que é muito semelhante à que se verifica no Algarve durante o verão. Ainda assim, a oferta cultural não é diversificada e Doha pode ser vista e revista em apenas dois, três dias. O Catar nunca foi um país de turismo de massas, sendo que dificilmente as excursões ao deserto, os concertos ao ar livre, os espetáculos de água e de luz, além da visita a museus, preencherão todo o tempo livre. E sem álcool demasiado à vista.

4. Sangue derramado

Cerca de 6500 trabalhadores morreram durante a construção das infraestruturas da competição, um número que envergonha a comunidade internacional e que obrigou recentemente Joseph Blatter a fazer um “mea culpa”, alegando que a escolha do Catar foi um erro.

Na última década, organizações governamentais e não-governamentais denunciaram inúmeras irregularidades e claras violações dos direitos humanos. Segundo a lei catari, um imigrante, quando é contratado, torna-se dependente da empresa que o recruta, o que o transforma numa espécie de propriedade dos patrões. Salários em atraso ou falta de pagamento, impossibilidade de escolher outro emprego, excesso de horas de trabalho sob condições extremas – em julho, o mês mais quente, a temperatura máxima aproxima-se dos 50 graus -, retirada de trabalhadores durante as inspeções da FIFA, castigos físicos por falta de resultados e limitação de liberdade (o passaporte era, até há pouco, entregue à entidade contratadora) conduziram a excessos e, em muitos casos, à morte. Houve também relatos de tráfico de escravos.

Os últimos retoques nas obras
(Foto: Jewel Samad/AFP)

Com a aproximação do Mundial, o Catar apressou-se a mudar a legislação laboral, só que o mal já estava feito e a verdade é que continuam a subsistir muitas dúvidas se, na prática, os trabalhadores passaram a ter melhores condições. Há quem defenda que houve, apenas, a preocupação de “maquilhar” o grave problema para evitar críticas e sanções.

5. Terrorismo e hooliganismo

Perto de dois milhões de adeptos de 32 seleções vão concentrar-se num curto território, motivo mais do que suficiente para colocar os cabelos em pé a qualquer força de segurança. No Catar, as autoridades dizem estar prevenidas e prontas para eventuais distúrbios, sendo que a principal “fan zone” de Doha, com capacidade para 40 mil pessoas, é a mais melindrosa.

A chegada das seleções
(Foto: Daniel Roland/AFP)

A altíssima concentração de pessoas é uma situação sem paralelo nas anteriores edições da prova. Nos dias que antecederam a competição, a Polícia já se fez notar em grande número nas principais artérias da cidade. Ao todo, serão mais de 50 mil agentes em ação, número em que se incluem soldados do Exército. Além disso, o país contratou forças policiais à Turquia, a Marrocos e ao Paquistão, sem esquecer os milhares de elementos de segurança privada que vão trabalhar na competição. Nos últimos meses, foram igualmente recrutados centenas de civis para missões específicas, como as de deteção de substâncias proibidas, droga e álcool, gestão do movimento de multidões e de filas nos estádios.

As naturais preocupações para que nada falhe em termos de segurança
(Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP)

O terrorismo é outro tema de alerta. Depois de países como a Arábia Saudita e o Egito terem cortado relações, em 2017, com o Catar, por alegadamente ter apoiado forças terroristas, como a Al-Qaeda e o Daesh, o país do emirado terá virado completamente a agulha no que diz respeito aos seus interesses geoestratégicos e contratou especialistas e tecnologia de ponta para evitar ser vítima de atentados. Os turistas norte-americanos são os mais receosos e os que mais preocupam, uma vez que o seu país mantém há décadas tensões políticas e militares com a região.

6. Homofobia

A homossexualidade é proibida e ninguém sabe o que poderá acontecer aos adeptos que a assumam. No Catar, comportamentos homossexuais são vistos como uma “doença mental”, como referiu Khalid Salman, antigo futebolista internacional catari e embaixador da prova. A precaução é fortemente recomendada aos visitantes. Os afetos na via pública estão vedados em qualquer caso, incluindo a casais heterossexuais.

Fora do Médio Oriente, grupos não-governamentais LGBT incentivam os futebolistas e as seleções a demonstrarem no relvado o apoio à causa. No entanto, as consequências desse tipo de posicionamento são difíceis de antecipar. A lei é dura, mas, com o Mundo atento, resta saber como reagirão as autoridades. Desviam o olhar e fazem que não viram ou defendem os costumes e as leis locais?

7. Igualdade de género

A mulher e o homem não são tratados da mesma forma e as cataris têm menos direitos do que as estrangeiras residentes. As locais podem escolher a profissão que desejam e conduzir, mas são obrigadas a ter um “responsável” masculino, que pode ser o marido, o pai ou um irmão. Não são obrigadas por lei a usar véu mas, culturalmente, acabam por praticamente receber essa imposição. Ainda assim, é um cenário diferente do que existe, por exemplo, na Arábia Saudita, no Iraque e no Paquistão, onde as leis vigentes anulam praticamente os direitos femininos.

Uma catari com um filho ao colo, equipado com as cores argentinas de Messi
(Foto: Odd Andersen/AFP)

No Catar, as mulheres que chegam do exterior não cobrem o cabelo, à exceção de quando estão nas mesquitas, onde essa postura é obrigatória. Nos centros comerciais, é recomendado que os ombros e os joelhos não estejam à vista. Muitos ginásios são mistos. Algumas portuguesas residentes em Doha garantem que a sua vida é praticamente igual à que tinham na Europa, lembrando, no entanto, a existência de certas particularidades. Caso façam jogging na rua, não são obrigadas a tapar-se, mas podem ser alvo de olhares ou de gestos mais conservadores se porventura os joelhos estiverem desnudos. Só isso, argumentam, pode intimidar. Em outros locais, como hotéis, as estrangeiras podem vestir-se como se estivessem no ocidente, ser extrovertidas nos afetos e consumir álcool. No entanto, não são só as mulheres que são alvo de limitações, os homens também têm de ser regrados no vestuário, como, por exemplo, não usando camisolas de alças.

8. Sem beijos nem álcool

Não é permitida a troca de afetos na rua. Um abraço é tolerado, mas um beijo prolongado ou sexo fora do casamento pode dar multa e prisão. No campo dos costumes, o país não brinca. No entanto, há quem acredite que o Mundial poderá arejar a forma de pensar e suavizar a tradicional rigidez. Simplesmente porque será impossível controlar os hábitos culturais de tantos adeptos que, em boa parte dos casos, viajam com os cônjuges ou namorados. No plano teórico, a melhor opção para as autoridades será a de “fechar os olhos”, sobretudo ao que se passa no interior das “fan zones”, onde os viajante usufruem de uma liberdade que, no exterior, é vigiada.

Os cafés, em Doha, decorados com as bandeiras dos diversos países presentes na prova
(Foto: Gabriel Bouys/AFP)

No que diz respeito ao álcool, é proibido, à exceção de hotéis e de restaurantes que pagam pelo privilégio – uma licença de consumo pode custar cerca de 200 mil euros. E esses valores acabam por ter consequências no bolso dos clientes. Em média, uma cerveja de 33 centilitros custa 15 euros e uma garrafa de vinho chega aos 50. Ainda nas “fan zones”, o consumo de bebidas alcoólicas é permitido com uma condição: uma pessoa embriagada só deixa o local após voltar ao estado sóbrio.

9. Pouca paixão por futebol

É a primeira vez na história dos Mundiais que um país com um ranking da FIFA tão baixo – neste momento está no 50.º lugar, mas ainda há não muito tempo sonhava com a entrada no top 100 – e sem presenças em edições anteriores, acolhe a competição.

Na verdade, o Catar não é um país apaixonado pelo futebol, como prova a média de espectadores, inferior a mil pessoas, nas bancadas das competições internas. Agora, com a construção de oito estádios para a competição, surge uma questão: o que vai fazer o país a esses recintos, com mais de 40 mil pessoas de lotação, após a prova?

A picture taken on October 20, 2022, shows a view of the 974 Stadium, which will O Estádio 974, que vai desaparecer após o Mundial
(Foto: Karim Jaafar/AFP)

As autoridades cataris garantem que foram erigidos com estruturas modelares para serem totalmente desmontados, caso seja necessário. Por exemplo, o Estádio 974 deve o seu nome aos 974 contentores de aço reciclado de que é feito e vai desaparecer após o campeonato. Por outro lado, outros recintos, inovadores no design e na sustentabilidade, serão remodelados, dando lugar a hotéis, museus e espaços comerciais no interior das infraestruturas.

O cuidado com o ambiente foi uma prioridade. A organização promete que o Catar terá o primeiro Mundial neutro em emissões de carbono e com pouco gasto de energia – milhares de painéis solares foram instalados em pequenas cidades para ajudar nessa missão. Além disso, investiram milhões de euros no processo de gestão de resíduos e na dessalinização das águas do mar para tornar as estruturas mais eficientes. Porém, os ambientalistas sugerem que a eficiência não será como está a ser publicitada. Desde logo porque, pela primeira vez desde o Mundial de 1930, realizado no Uruguai, a prova será realizada num espaço geográfico extremamente reduzido. A distância máxima entre estádios é de apenas 55 quilómetros, o que provocará congestão de meios e de poluição.

10. Efeitos secundários

À medida que a prova se aproximou do início, as vozes contra a realização do evento no Catar multiplicaram-se. Várias cidades, em especial em França, país que ironicamente terá sido decisivo na escolha da FIFA, recusaram criar “fan zones” para os jogos como medida de protesto.

A Hummel, que veste a seleção da Dinamarca, criou um terceiro equipamento, preto, para homenagear os mais de seis mil trabalhadores mortos na construção das infraestruturas. Em todas as roupas de competição dos dinamarqueses, o símbolo da marca de artigos desportivos aparece tão leve que quase não se vê. Tudo porque não quer que o seu nome apareça numa prova em que não há respeito pelos direitos humanos.

O médio dinamarquês Christian Eriksen exibe uma das camisolas contestatárias que a Hummel fabricou
(Foto: Mads Claus Rasmussen/Ritzau Scanpix/AFP)

E até no nosso país houve efeitos secundários. António Alves de Carvalho era embaixador de Portugal no Catar desde 2020 e, em agosto último, foi exonerado das suas funções pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, depois de ter dito à SIC que as pessoas de “pele escura” conseguiam trabalhar mais horas sob uma temperatura superior a 40 graus.

Eric Cantona, antigo jogador da seleção francesa e do Manchester United, garantiu que a competição é uma “aberração” e que não vai acompanhar os jogos. “Não é um verdadeiro Mundial, tudo foi feito por dinheiro porque não há nada para desenvolver no país em matéria de futebol. Morreram milhares de pessoas e vamos celebrar a competição como se nada tivesse passado?”.

11. Paragem forçada

E porque estamos a falar de futebol há que destacar as polémicas que correm nas quatro linhas, sobretudo na Europa, nada agradada com a interrupção das diversas competições, uma vez que é de todo impossível prever como voltarão as equipas depois de uma paragem forçada tão longa. Esse receio é naturalmente mais acentuado entre os emblemas que fizeram um bom início de temporada.

Há clubes que vão dar alguns dias de férias aos grupos de trabalho, outros irão treinar a um ritmo moderado e a única garantia é a de que, após a pré-época de julho, haverá uma nova pré-época em dezembro, com jogos particulares e um elevado foco no nível físico dos atletas. No entanto, a vertente psicológica também terá de ser valorizada, com destaque para os jogadores que alimentavam expectativas e acabaram por não ser convocados para o Mundial, assim como para os que vão regressar mais cedo da prova, fruto de derrotas difíceis de digerir.

Fernando Santos, que terá de gerir a seleção portuguesa a meio de uma época desportiva
(Foto: António Cotrim/Lusa)

Em Portugal, o calendário de competições será preenchido com a disputa da primeira fase da Taça da Liga. O regresso do campeonato português está marcado para a semana entre o Natal o Ano Novo.