O trabalho já não é para a vida. Mas está longe de ser só trabalho

(Foto: Master1305/AdobeStock)

Como as novas gerações entendem o conceito de carreira e o que esperam de uma experiência profissional. Alinhamento com os valores da empresa é fundamental.

Ângela Bismarck, 27 anos, natural do Porto, teve os primeiros trabalhos ainda miúda, devia ter uns 16 anos, na altura eram temporários, ações promocionais sobretudo. Entretanto, começou a faculdade, foi tirar Som e Imagem na Católica, continuou a trabalhar enquanto estudava, pelo menos durante grande parte do tempo. Quando acabou, nem teve de esperar muito, rapidamente começou a trabalhar na área, no caso numa produtora audiovisual. Esteve lá três anos, integrou vários projetos, foi progredindo até chegar ao ponto em que “ganhava mesmo bem”. E ainda assim, ao fim daqueles três anos, decidiu sair.

“O que expliquei ao meu chefe na altura era que queria fazer coisas diferentes, conhecer pessoas diferentes, viajar. Parecia que estava a acabar com alguém”, brinca Ângela, agora à distância. Depois, era a vontade de ter os próprios horários, de escolher as férias sem restrições, de lidar com o cliente à maneira dela, de desenvolver técnicas diferentes. “Comecei a sentir que a minha criatividade estava a fazer um fade out [efeito usado em vídeo, que se traduz pelo desaparecimento gradual de uma dada imagem], que estava a estagnar. Já nada estava a puxar por mim.” E então ousou trocar o certo pelo incerto. Que é como quem diz arriscou ser freelancer. “A nossa geração não é como a anterior. Antes começavas cedo a pagar uma casa, um carro. Eu, para já, não tenho responsabilidades nenhumas, não sinto necessidade de casar nem de ter filhos já, só tenho o aluguer de um quarto para pagar, para arriscar era agora.”

A filosofia de Ângela, a ideia obstinada de optar pela incerteza da vida de freelancer para se livrar das amarras à liberdade e à criatividade, conta uma história maior, de uma relação com o trabalho que se tem vindo a alterar com o tempo. Desde logo porque, como reconhece Artur Queirós, especialista em Psicologia do Trabalho e das Organizações e sócio-gerente de uma empresa que se dedica à gestão pessoal de carreira, “deixou de fazer sentido procurar um trabalho para a vida”. “Até porque antes era preciso estar X anos numa determinada função para se subir um novo patamar. Hoje em dia, esses são modelos cada vez mais em desuso. Aliás, tenho vários clientes que trabalham em instituições públicas, que se queixam que o modelo de desempenho instituído não respeita a meritocracia.”

Uma visão semelhante tem Vânia Borges, diretora de Recursos Humanos (RH) da Adecco Portugal, empresa de consultoria e soluções de RH. “Ao contrário das gerações anteriores, a Geração Z [nascida entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2000] não procura um emprego para a vida, mas um contexto profissional onde haja enquadramento para o desenvolvimento pessoal em harmonia com as causas que defendem. O significado de carreira, entendido como uma progressão aritmética, não é sequer um objetivo.”

O que tem tudo que ver com alguns dos traços característicos desta geração. “São os chamados nativos digitais. É um grupo de pessoas marcado pela Internet. Esta faz parte do seu DNA e da sua forma de socializar. São multitarefas, mas o seu tempo de atenção é muito breve. São independentes, consumidores exigentes e ocuparão cargos que atualmente ainda não existem.” Tudo características que explicam que para estes jovens se manterem na mesma empresa durante anos terão de ter a possibilidade de “ocupar diferentes funções ao longo da vida, nas quais sintam uma constante evolução dos seus conhecimentos e das suas capacidades”.

“A nossa geração não é como a anterior. Antes começavas cedo a pagar uma casa, um carro. eu, para já, não tenho responsabilidades nenhumas, não sinto necessidade de casar nem de ter filhos já, só tenho o aluguer de um quarto para pagar, para arriscar era agora”, reconhece Ângela Bismarck
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Daniel Caridade, 26 anos, formado em Engenharia e Desenvolvimento de Jogos Digitais pelo IPCA (Instituto Politécnico do Cávado e do Ave), não doura a pílula. “Acho que filosofia do amor pelas empresas já não encaixa muito na sociedade. Eu costumo dizer que visto a camisola enquanto o contrato dura”, atira, sem rodeios. Quando acabou o curso, não hesitou em rumar ao Reino Unido, para trabalhar numa empresa de videojogos. Três anos depois, dizia adeus, e mudava-se para uma outra companhia, onde continuou ligado ao desenvolvimento de software, mas desta feita ao software de bilheteira. “A principal razão para mudar foi o salário que me ofereceram”, assume. E admite que não ficará por aqui. Possivelmente, nem sequer pelo Reino Unido. “Este é o meu segundo trabalho, mas quase de certeza não será o último. Gosto muito dos meus colegas, mas não estou preso a eles, nem à empresa, nem à cidade em que estou [Leamington Spa]. Se amanhã alguém me fizer uma oferta melhor, que me interesse, independente de onde seja [outro país], não vejo porque não vou aceitar.” Não vale tudo, ainda assim. “Já recusei ofertas de empregadores que me davam mais dinheiro por serem temas que não me diziam nada.”

Motivação, valores, propósito

Esta é uma questão particularmente relevante nesta geração. Isso mesmo concluiu um estudo recente promovido pela Fundação Grupo Adecco, “Equiping Gen Z to lead an unpredictable future” (Equipando a geração Z para liderar um futuro imprevisível, em tradução livre), fruto de um inquérito de dois anos a jovens no contexto do Programa Adecco “CEO for one month”. Vânia Borges destaca as principais conclusões. “De acordo com este estudo, é a motivação que cria um sentido de propósito ou missão, sendo esta a característica que pode explicar o porquê de a Geração Z colocar o seu foco na satisfação. Se estão numa empresa em que não se sentem motivados, em que sentem que os valores da empresa ou organização onde estão inseridos não está alinhada com os seus propósitos, não hesitam em mudar.”

A especialista em recursos humanos aponta ainda o top cinco de motivações profissionais desta geração, segundo o estudo referido: crescimento pessoal, realização, afiliação (interação e identificação de valores com outras pessoas no seu trabalho e organização), interesse e princípios pessoais. Neste último caso, “a possibilidade de defender ideias e estar em conformidade com elevados padrões éticos e de qualidade”, esclarece. A este propósito, refere ainda os resultados plasmados no relatório “Employee expectations”, sobre o que esperam os profissionais dos seus empregadores. O mesmo revela que os colaboradores não só esperam “que os seus empregadores partilhem os seus valores” como que “demonstrem vontade de agir sobre eles”. Com as expectativas em relação à sustentabilidade ambiental a serem particularmente relevantes. Segundo o estudo, estas aumentaram “128% para os empregados da Geração Z” e 62% para os millenials – também chamados de Geração Y (nascidos entre início da década de 1980 e meados da seguinte).

Na realidade, para Artur Queirós, o fosso entre as duas gerações não é particularmente significativo. “A Y e a Z acabam por se cruzar. Não noto assim tantas diferenças entre elas. Há é uma grande diferença em relação à geração X [nascida entre meados de 1960 e início de 80]. De resto, quanto mais recente é geração, maior a preocupação com o ‘work life balance’ [o equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho].” Olhando às intervenções que faz, tanto a nível organizacional como a nível individual, os motivos mais comummente apontados para uma mudança de emprego são a falta de reconhecimento, a sobrecarga de trabalho, a falta de um modelo de gestão de carreira por parte da empresa e a falta de flexibilidade de horários, com os dois últimos a representarem as preocupações mais recentes.

“Este é o meu segundo trabalho, mas quase de certeza não será o último. Gosto muito dos meus colegas, mas não estou preso a eles, nem à empresa, nem à cidade. Se alguém me fizer uma oferta melhor, que me interesse, independente de onde seja, não vejo porque não vou aceitar”, garante Daniel Caridade
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A este propósito, Artur Queirós releva que as preocupações das novas gerações não podem ser dissociadas “da evolução do modelo da sociedade ocidental”. “Se a sociedade evoluiu para um ponto em que as pessoas são mais autónomas e emancipadas, é normal que isso venha provocar uma maior rotatividade. As pessoas já não saem só porque têm motivos de insatisfação, saem porque querem experimentar coisas novas. Há também uma maior consciência ambiental, cívica e de responsabilidade social e é normal que essas novas gerações sintam que para estarem bem consigo próprias têm se rever nos princípios da organização. Atribuem muita importância ao significado do que fazem.”

“Salário emocional”

E de que forma é que as empresas se procuram adaptar a estas novas pretensões? Desde logo criando medidas de incentivos que vão ao encontro das mesmas. “Programas de flexibilidade, parcerias com empresas na área da saúde e do bem-estar, por exemplo. Cada vez mais as empresas se preocupam em perceber quais são as necessidades individuais dos colaboradores. Há uns anos preocupavam-se em dar resposta a necessidades transversais, agora há a preocupação de conhecer mais as pessoas.” E dá um exemplo concreto de como é importante que essa adaptação caso a caso exista. “No outro dia tive uma cliente que chegou à sessão bastante alterada porque a empresa em que trabalha lhe tinha oferecido um cheque-creche quando ela não tem filhos e nem sequer estava a conseguir engravidar. Este é um exemplo real de como as empresas ainda não estão devidamente trabalhadas.”

Vânia Borges também entende que se nota uma maior procura por “novos métodos de retenção de talento, com uma enorme preocupação na saúde mental e no bem-estar físico e psicológico” dos colaboradores. “Horários flexíveis, formação específica e de desenvolvimento pessoal, team building, eventos corporativos exclusivos para colaboradores, vantagens e acordos com fornecedores de serviços diferenciados são apenas algumas das formas que as empresas encontraram para fazer a diferença. Estão cada vez mais preocupadas em desenvolver um contexto de trabalho onde as pessoas sintam que têm espaço para realizar em pleno o seu potencial”, salienta. E introduz um conceito particularmente relevante neste contexto: o de “salário emocional”. “Se a remuneração atrai candidatos, é o salário emocional que retém talento.”