Rui Cardoso Martins

O tesouro da gasolina


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Neste mundo que ahi vai obra dum incoherente, que é um mundo brutal, uma violência a êsmo – abuso e altero versos de José Duro – uma das grandes perguntas é onde é que vamos parar. Mas parar mesmo, por falta de combustível. Como condutor sinto-me, talvez como vós, roubado nas bombas de gasolina. Nós, os que vamos meter 50 euros (há ainda quem meça só os litros?) e de súbito batemos um recorde: em poucos segundos, percorremos os 50€ obstáculos, a corrida acaba e nem meio depósito se encheu. Ali está, científico, o cronómetro olímpico: gasóleo acima de 2€!

Mas nos tribunais vejo coisas que me dão a esperança de que é possível andar na estrada sem nos arruinarmos. Nem sempre corre bem: há semanas, contei o caso de um jovem muito tatuado que fugiu de 13 bombas diferentes depois de atestar o depósito, foi um mês de loucura on the road, a matrícula emporcalhada, mas algures a sua cara foi filmada e o ladrão apanhado. Admitiu as culpas e, no fim, até foi fácil porque o irmão mais velho, cansado de precipícios familiares, cobriu o golpe, pagou-lhe a dívida e as custas judiciais.

O senhor Alfredo fez coisa mais fina. Soube aproveitar os erros escandalosos da ingenuidade humana. Escutai, povo português: conseguiu oito mil euros de combustível à borla! Quando entrei na sala estava Alfredo no banco dos réus, sossegado na sua barba. A testemunha de acusação era dono de uma empresa de transportes, carros, carrinhas, camiões e admitia a primeira ingenuidade. A empresa tem cartões de crédito especiais para encher os depósitos.

– Vendemos o veículo e, por lapso, o nosso cartão de combustível ficou no porta-luvas…
Pouco depois, a segunda ingenuidade. Nesta, o patrão dos transportes já confessava vergonha:
– É que por azar… e falta de cuidado, hum… ao lado do cartão de combustível estava um papelinho com o código… Foi de facto um grande erro nosso.

De acordo com a acusação, o erro foi bem aproveitado por Alfredo, a cujas mãos foi parar o cartão. Começou a encher o depósito para si, familiares e amigos como se não houvesse amanhã (haverá para nós?). Chegavam à estação de serviço em fila indiana, formação de lagarta, outros traziam bidons, etc..

Alfredo tem uma explicação: um desconhecido foi ter com ele e fez-lhe a proposta. Um pacto diabólico. Alfredo só tinha de encher o bojo de outros carros por si escolhidos, que o tal homem oferecia metade do valor do combustível ao próprio Alfredo e a quem mais ele convidasse, para encher os carros e bidons. E ele caiu (também sofre de ingenuidade) neste esquema. Mas não foi Alfredo, disse Alfredo, quem se apropriou do cartão alheio e não foi ele quem praticou burla informática (usar o código secreto de outro). No fundo, Alfredo é que teria sido abusado pelo desconhecido… A verdade é que saíam os dois beneficiados, quem pagava era o cartão de outro. Passou-se isto há meses, nos tempos menos estupidamente caros dos combustíveis. Repito, oito mil euros. Finalmente, a terceira ingenuidade: a polícia fez asneira e enviou ao tribunal um CD avariado. Ninguém no tribunal conseguiu abrir as imagens de vídeo que serviriam de prova. O código falhava e, mesmo assim, a polícia, que sabia do erro, enviou a “prova” e o Ministério Público aceitou-a, e assim chegaram a julgamento imagens que não podiam ser vistas. Isto é, Alfredo não aparece em lado nenhum. E disse o advogado de Alfredo nas alegações:

– Havia uma terceira pessoa que ia pagar o abastecimento com esse cartão. Não existe qualquer prova de que o arguido tivesse utilizado o tal cartão. De que usou o cartão na Alta de Lisboa. O mesmo cartão foi usado em Sintra-Ranholas!…

O advogado de Alfredo esticou ligeiramente Ranhooolas, transformando-a em geografia humorística, um golpe de entoação juridicamente irrelevante mas que – o advogado sabia o que fazia – ganhava peso na apreciação de um caso com fracas provas.

Uma familiar de Alfredo, ao vê-lo algemado (alguma coisa terá feito na vida, está preso por outros crimes), gritou no corredor:
– Malditos polícias! Eu só quero que haja uma bomba lá em baixo e que expludam todos!

Ladrões de combustível. Uns são apanhados e outros fogem pelos buracos processuais, como num depósito furado.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)