O Rock in Rio também é um festival de bairro

A música urbana tem um espaço próprio na edição deste ano do Rock in Rio Lisboa. Vários bairros estão representados no Palco Yorn, mas Chelas joga em casa, com artistas como Lewis ou Danny The Dawg. Sam The Kid, o curador, leva-nos numa visita guiada ao bairro com pior fama de Lisboa, mas, simultaneamente, dinamizador da cultura hip-hop e de iniciativas de inserção social. Viagem à Chelas que não vem nos jornais e que recebe um dos maiores festivais de música em Portugal.

O som do hip-hop, nacional e estrangeiro, que se ouve na barbearia “Chelas Cuts”, na Zona I do bairro de Chelas, freguesia de Marvila, em Lisboa, é abafado pelo barulho do pente zero, encostado à nuca de mais um cliente. José Silva, 39 anos, prepara o pente dois para o corte não ficar tão acentuado, mas, na opinião do barbeiro, o corte radical tem de ser na má fama do bairro – a vizinha Zona J incluída, onde há pouco mais de um mês um fadista amador, José Luís, de 43 anos, foi assassinado. Ao lado de Sam The Kid, Adriano Finuras ou Ricardo Gomes, José faz parte da “Chelas é o Sítio”, uma associação sem fins lucrativos que juntou os habitantes para atuar no espaço público em busca de mais equipamento urbano, espaços verdes, educação, cultura ou sustentabilidade.

Adriano Finuras no Torre Laranja Futsal Clube
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Alguns locais como a Zona J, que inspirou o filme com o mesmo nome realizado por Leonel Vieira, em 1998 – e que, no ano seguinte, foi premiado com dois Globos de Ouro, da SIC -, têm o estereótipo de problemáticos, mas “Chelas é o Sítio” quis mostrar o melhor que o bairro tem, também, a nível musical e reuniu os talentos locais para atuar no projeto “Prata da Casa”, no espaço “Casa da Pedra”, no Rock in Rio Lisboa. O projeto ganhou asas e rapidamente incentivou a renovação do Palco Yorn – antigo Yorn Street Dance -, agora exclusivamente focado em artistas deste e de outros bairros que vão atuar no Parque da Bela Vista, em Chelas, nestes dois fins de semana de junho e que junta nomes como Malabá, G Fema, Phoenix RDC, Eva RapDiva, Danny the Dawg, Lewis, Vado, Ary Rafeiro ou Kappa Jotta.Os artistas vão ter a companhia da Jazzy Dance Studios, parceira do Rock in Rio desde 2012 e responsável por muitas coreografias. A academia deu formação, por exemplo, aos famosos que participaram nas diversas edições do programa “Dança com as estrelas”, dos domingos à noite na TVI.

Sam The… “Man”

Na curadoria do Palco Yorn está um nome incontornável da música nacional, rapper e produtor de música: Sam The Kid, ou Samuel Mira, 42 anos, aproveitou a visibilidade de décadas no meio musical para catapultar o projeto “Chelas é o Sítio”. Nascido e criado na zona, intérprete de músicas como “Lágrimas”, “Negociantes” ou “Sendo assim”, é o guia, por algumas horas, da NM, pelas ruas e prédios das zonas J, M, L e N1 ao lado de Adriano Finuras, 42 anos, dinamizador do Torre Laranja Futsal Clube. Sam percorre as ruas de Chelas em passo apressado, ziguezagueando, como que ao som de uma batida de hip-hop e, entre novos e velhos, não há quem não o conheça, quem não lhe dê um abraço ou lhe suba o polegar. Ele é o vizinho, amigo, confidente e porta-voz que reuniu, inclusivamente, com o antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa Fernando Medina para dar voz e notoriedade à associação.

Sam The Kid junto ao Palco Yorn, que recebe nestes dois fins de semana a música urbana
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

“Para nós é uma honra poder misturar algum talento da zona com outro que já está a viver o sonho. É um género musical que eu respiro, muito à base da música urbana, do rap. Então estamos felizes por ter conquistado este espaço”, diz o rapper à nossa reportagem. “Vamos ter uma festa que envolve a nossa cultura e a malta aqui da zona, porque nós partilhamos a visão da inclusão e de dar as oportunidades a quem não costuma ter. Ainda por cima jogamos em casa e até podemos vir para cá a pé, os artistas vão de casa diretamente para o palco”, acrescenta Sam The Kid, que, para os habitantes da zona, podia ser considerado… “The Man”, pelo crescimento que tem proporcionado.

A história do impulso da “Chelas é o Sítio” para o Rock in Rio Lisboa conta-se em poucas linhas. “Estávamos a fundar a associação há um ano quando recebo um telefonema do Ricardo Comprido, que queria que eu fizesse uma curadoria na Casa de Pedra. Então sugeri essa curadoria, que se passou a chamar Prata da Casa e que envolvia o talento local que fazia showcases. Quando nos foi feito o convite para o Palco Yorn, não estávamos à espera que fosse tão cedo. Então, não chamámos apenas do bairro, mas outros da mesma área musical que também estão a viver o sonho”, refere o músico que, há 20 anos, lançou “Sobre(tudo)”, o álbum onde canta que “Chelas é o sítio, Chelas é o berço”. Uma luta travada contra tudo e todos, sobretudo aqueles que, lamenta, “querem tirar Chelas do mapa”: é que há apenas dez anos o bairro começou a desaparecer das placas indicativas da freguesia de Marvila e surgiu a polémica quando a iniciativa “Marvila no Coração” pretendeu apagar o nome de Chelas de estações e até de uma igreja.

“A quererem apagar tudo o que tenha a ver com Chelas? Querem que o metro se chame ISEL, querem que o convento tire Chelas do nome, querem que a estação de comboio se chame Beato. Não, não, não!”, insurgiu-se na altura o rapper nas redes sociais. “Chelas não vai a lado nenhum. Vai ficar por aqui. Para sempre”, garantiu Sam The Kid.

“Chelas é a capital de Lisboa”

De casa, a pé, até ao Rock in Rio Lisboa, chega Lewis, 22 anos, uma das novas atrações do Palco Yorn. “É mesmo só um tirinho até ao recinto, é engraçado passar de desconhecido do grande público para alguém que as pessoas vão ver no palco”, diz, a rir, este jovem, que foi descoberto para a música por um amigo em plena sala de aula, quando fazia “batuques” na mesa, o que levava, muitas vezes, à “expulsão”. Mais tarde, e ainda a cantar na rua para o bairro ver, esse amigo levou-o a um pequeno estúdio e, a partir daí, ganhou fama.

Lewis vai atuar no Parque da Bela Vista
(Foto: Diana Quintela/Global Imagens)

Criado em Chelas, Lewis defende um amor eterno pelo bairro. “Chelas é a capital de Lisboa e Lisboa a capital de Portugal”, resume, para justificar. “É o bairro de Lisboa mais falado. Está cheio de talento e há aqui uma irmandade fora de série. E, depois, é o bairro da moral”. Da moral? “Onde quer que vamos, seja Porto, Setúbal, Aveiro ou outra cidade qualquer, dizemos que somos de Chelas e as pessoas ficam ‘wow!’. Todas gostam de nós.” Lewis vai ao Rock in Rio Lisboa “desde sempre” e, este ano, espera ver Post Malone ou Anitta. Curiosamente, canta hoje, dia 19, data dos Black Eyed Peas. “Vou estar, também, em palco e acho que vai ser mesmo incrível”, partilha, com uma ansiedade positiva.

Danny The Dawg, que atuou neste sábado, dia 18, também vai a pé para o recinto. Afinal, mora paredes-meias com o Parque da Bela Vista. Aos 30 anos, foi influenciado pelo irmão, dez anos mais velho, que grafitava, para entrar no mundo das artes. “Quando era miúdo já implorava por uma muda de roupa, calças largas e queria os ténis dos skaters”, afirma, enquanto lembra que gastava o dinheiro dos aniversários “num CD prateado do Puff Dady”. Danny começa, aos 19 anos, por ser um “battle rapper” e é nessa altura que vai para estúdio com o artista Manifesto. Juntos exploraram “temas, conceitos e produção” e, graças ao som diferenciado e à ação nas redes sociais, chama a atenção de Varela e de Sam The Kid. Orgulha-se de, como se diz no meio, “não ser um pónei de um só truque” e, no Palco Yorn, quer “trazer o melhor do bairro”. “Violência há em todo o lado, inclusivamente no interior, onde surgem notícias de crimes, muitas vezes até macabros. Infelizmente, este bairro sofre com o estigma, e só aparece na televisão pelos piores motivos.”

Danny The Dawg vai a pé de casa até ao recinto do festival
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

No Rock in Rio Lisboa quer muito ver a atuação de Malabá – “devido à forma como agarra no público” -, assim como a do seu amigo Lewis. Na dinâmica entre o bairro e o maior festival de música em Portugal não são só os artistas a tentarem ser os fiéis da balança. Roberta Medina, vice-presidente executiva da organização, destaca a especial relevância de Chelas. “Vivemos a Bela Vista há 19 anos, altura em que era um parque pouco conhecido. Quisemos que as pessoas tirassem proveito e fizemos vários investimentos com a Câmara Municipal de Lisboa – ciclovias, skate park ou a ponte que liga às Olaias -, e começámos a perceber que existem preconceitos estagnados no tempo em relação aos bairros sociais”, sublinha. “Isto não faz sentido, só exclui pessoas que se sentem menos valorizadas. Então começámos um projeto aqui na Casa de Pedra que foi a Prata da Casa, para trazer o talento do bairro e a partir desse início pensámos: ‘porque não tornar a ideia mais robusta?’ Aí nasce a renovação do Palco Yorn, exclusivamente focado em projetos do bairro”, revela. “Não é um projeto social, de todo, é, através da cultura, mostrar a cidade como um todo”, conclui a responsável do Rock in Rio.

Foi aqui que tudo começou

Para chegar até às atuações no Palco Yorn é preciso descobrir as raízes dos artistas e das pessoas que os impulsionaram. Adriano Figuras, 42 anos, senta-se ao volante da carrinha Peugeot estacionada à porta do Rock in Rio Lisboa. As próximas duas horas são para mostrar o melhor que Chelas tem para oferecer ao nível da dinamização do bairro. Começamos pela Zona M, ou Bairro do Armador. Serpenteamos entre prédios grafitados e miúdos a jogar à bola na rua e chegamos à primeira paragem, ao Kriativu, um ateliê de criação para a comunidade. Somos recebidos por Nuno Varela, 38 anos, outro curador do Palco Yorn, que mostra a versatilidade do espaço, que tanto dá nova vida a sapatilhas, como incentiva a partilha de bicicletas ou distribui fruta pelo bairro. Aqui há, ainda, espaço para música, podcasts, workshops e ainda um estúdio. Um dos maiores empreendedores do hip-hop em Portugal fala sempre no plural e garante que o estúdio de gravação está aberto para quem queira gravar “metal, fado ou programas de culinária”.

Nuno Varela fundou um ateliê de criação
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Seguimos para a Academia Jorge Pina, o ex-atleta, de 46 anos, que venceu vários títulos no pugilismo nacional e que perdeu a visão quando se preparava para tentar alcançar o título de campeão do Mundo. Resiliente, é um modelo inspirador para todos os que se querem superar. Jorge Pina mostra, com orgulho, o espaço de 1700 metros quadrados que tem, inclusivamente, máquinas adaptadas a pessoas com deficiência. Há artistas do Chapitô a treinar aqui, tal as valências do espaço. A academia tem salas de palestras, reuniões e salas de estudo, que ocupam o tempo “para os miúdos não estarem a fazer asneiras”, diz-nos o anfitrião, que se fotografa ao lado de Joaquim Silveira, uma “lenda viva” das noites dos espaços lisboetas Johnny Guitar ou Rock Rendez-Vous. Despedimo-nos e seguimos em frente.

Joaquim Silveira e Jorge Pina na academia onde podem treinar pessoas com deficiência física
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Aguarda-nos a Zona J e o Torre Laranja Futsal Clube. É aqui que Adriano Finuras se sente em casa e apresenta-nos, com orgulho, o seu espaço multiúsos, com sala de jogos e Playstation, para receber os miúdos da zona. Segue-se o campo de futebol de praia do Clube de Futebol de Chelas. Foi o primeiro em Lisboa e, aqui, não há mar à vista. Os grandes clubes vieram aqui treinar antes de outros campos do género começarem na cidade. O campo fica ao lado da TV Chelas, onde Sam The Kid grava os seus conteúdos.

A última paragem desta volta por Chelas é junto ao campo de basquetebol. Aqui temos à nossa espera Emília. Segundo nos contam, estar na Zona J e não falar com esta mulher de 57 anos é “como ir a Roma e não ver o Papa”. “Estou nesta comunidade há mais de 40 anos. Em 1982 comecei a fazer voluntariado e nunca mais parei”, começa por referir Mila, como é tratada por todos. “De crianças, jovens e idosos acabei por ficar só com os idosos. Trabalho na comunidade de Santa Clara e São Maximiano, que é a paróquia, com atividades para idosos.”. Mila defende que esta faixa etária merece muito mais. “Pela sensibilidade, pela fragilidade deles e por mereceram mais, a juventude e os mais novos não valorizam muito. Se estamos aqui, temos um passado.” Quanto à dupla que está á sua frente, Sam e Adriano, só elogios. “Conheço o Sam desde menino e são do melhor, quando falo a referência é o Sam e o Adriano, porque eles dão vida a Chelas”, conclui Mila.

Ir a Chelas e não conhecer Emília “é como ir a Roma e não ver o Papa”, garantem os moradores do bairro. Começou há 40 anos a fazer trabalho comunitário e nunca mais parou
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Regressamos à barbearia “Chelas Cuts”, decorada pelo artista Luís Neves, que tem rádios na parede que tocam em tempo real, uma sapatilha gigante e a imitação de um autocarro da Carris, o 59, que liga a Praça da Figueira, no centro de Lisboa, a Chelas e que, com o laranja típico, contrasta com o preto e branco que domina na sala. “Fiquei mesmo agarrado às minhas raízes, para poder ajudar quem precisa”, resume José Silva, já agarrado ao pente para dar o derradeiro toque no visual do cliente. “Nasci neste bairro, em casa, que fica ali na rua, nem fui para a maternidade.”.

José Silva, em ação na barbearia Chelas Cuts, é um dos impulsionadores da associação que ajuda a lançar jovens artistas do bairro
(Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

Com a escova, retira agora os restos de cabelo dos ombros do cliente. O peso dos próprios ombros retira-o com a dinamização do seu bairro. Todos os dias. “Só tento dar o melhor com a malta da associação e o esforço tem sido recompensado”, assegura, à despedida.

A programação do Palco Yorn

Lewis sobe ao Palco Yorn neste domingo, 19. O artista faz parte de uma geração que já nasceu no atual Bairro do Armador, mais conhecido para alguns como Zona M. É também neste dia que se apresenta Kosmo Da Gun, artista que passou parte da sua infância em Lisboa e que, mais tarde, se mudou para a Margem Sul. Segue-se Ary Rafeiro, rapper de Santo António dos Cavaleiros que passa por ritmos brasileiros e do soul. Para fechar o dia é a vez da atuação de 9 Miller, rapper na Apelação, e cujos singles de estreia, “Limonada” e “Filho da Guida”, somaram mais de 13,5 milhões de visualizações no YouTube.

Na próxima semana, no dia 25, o Palco Yorn recebe mais um filho de Chelas, Karma The Only Son, e logo de seguida Tilhon, artista original de Viseu, mas que durante a sua infância e juventude passou por diversos bairros do norte do país. Segue-se Eva RapDiva, proveniente de Angola. A fechar o palco, Phoenix RDC, pioneiro no rap feito em Vialonga e original do Bairro da Icesa. Para o último dia do festival, a 26, sobe ao palco G Fema, uma filha de Chelas que também nasceu perto da Zona J e representa, neste momento, a Zona M. Segue-se Malabá, artista de Paio Pires (Setúbal) que se tornou conhecido pelo sucesso nas redes sociais com os temas “Cem ou sem problemas” e “O nosso som”. Por fim, e para fechar o Palco Yorn, apresenta-se Kappa Jotta: vem da Linha C (arredores de Cascais) e conta com dois álbuns editados – Vírus e Ligação -, que somam milhões de visualizações em todas as plataformas digitais. A fechar a 9.ª edição do Rock in Rio Lisboa no Palco Yorn estão cinco rapazes de Mem Martins mais conhecidos por GROGNation.