Joel Neto

O reino do colchete


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Há vinte anos que ouço amigos queixarem-se do trabalho que um recém-nascido dá e há outros tantos que atribuo o queixume a esse misto de exagero, egocentrismo e preguiça – enfim, ao mimo – a que toda a gente tem direito após as ansiedades de uma gravidez. Imaginava-os esparramados diante da televisão, tardes inteiras, num deleite de que nem a velocidade com que engordavam contava inteiramente. Peço desculpa por tudo isso: um recém-nascido dá um trabalho dos diabos, e eu nem quero imaginar quando se trate de um bebé difícil.

O Artur, para já, não é. No início deu-nos umas madrugadas mais duras, porque à meia-noite abria maquinalmente os olhos, como um garoto num filme do Carpenter, e então era toda uma festa de helicópteros, segundas cagadas (juro que procurei um sinónimo), empanturramentos, engasgadelas. Mas já percebemos que é só à quinta-feira à noite, e estando lua cheia.

Entretanto, vai haver cólicas, viroses, negativas, namoradas. Mas, por ora, tem sido só comer, dormir e ver o Mundial. Dorme horas, o pequeno Artur – no berço, no colo, no ovo, no ninho, no pano -, e só chora quando tem a fralda suja ou o estômago vazio. Até a tarefa de distingui-los nos facilita: sendo fome, uns minutos antes os cães das redondezas põem-se a uivar, os lavradores vão arrumar o gado e a Protecção Civil emite um comunicado. Só então a casa vem abaixo, apanhando-nos prevenidos.

Pois, mesmo assim, o trabalho é infinito. Uma pessoa ainda não acabou de mudar uma fralda e já a comida está atrasada; consegue enfim chegar à roupa que se acumula na cesta e já o saco do lixo clama por ser trocado, toalhitas sujas espreitando sob a tampa que deixou de fechar. Aliás, quando a Marta escolheu para o quarto dele um caixote tão grande, eu ri-me: um daqueles de WC bastava. Neste momento já engendro planos para roubar o contentor da rua.

Fraldas, resguardos, discos, pomadas, babygros, cachecóis de Portugal. Previ aqui que viesse a dar jeito uma terceira mão, mas não: a terceira era só para segurar a chucha ao substituir a fralda antes de uma mamada. Houvesse mais quatro ou cinco, e arranjava-se préstimo para todas – inclusive, haja aí à venda um segundo cérebro, para funções independentes, e aproveita-se.

Só em colchetes, já apertei uns dois milhões. Eu nem sequer sabia que havia tanto colchete no Mundo, quanto mais cá em casa. A ocupação é tal, mesmo dividindo-a bem entre os dois, que no outro dia dei por mim a responder com um áudio a alguém que me escrevera. Até uma SMS sem pontos e vírgulas já enviei. E, numa daquelas quintas-feiras, estendi-me um segundo sobre a mesinha da sala, a ver se o adormecia, e só acordei ao fim de duas horas, quando ele quis comer e o carro-patrulha já nos tocava ao portão.

De resto, é claro: não escrevo uma linha há semanas (salvo estas crónicas). Não vou ao ginásio nem jantar fora. Na semana passada, um programinha de TV em que mando umas bocas foi cancelado – fiz uma festa. Um engenheiro a quem pedi um orçamento entrou na farmácia onde eu esperava vez – fingi que não o vi e zarpei. E a verdade é que não tenho um remate para isto, a não ser este: ter um bebé é um tormento, e não há nada neste Mundo que eu preferisse estar a fazer.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)