Rui Cardoso Martins

O rapaz da trotinete


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Lembro-me, há dois anos, noutras Páscoas pandémicas, de estar encerrado, abrir a varanda e pensar (sei-o porque escrevi):

“Tenho muito tempo aqui em casa, não tenho tempo nenhum. Lá fora, pode-se jogar à bola na estrada como em miúdo, não há carros. Mas não se pode, aparece o guarda do bigode e ele leva a bola para a esquadra e nunca mais a vemos. Aliás, o guarda do bigode agora está velho e não o deixam sair à rua.” Mas naquela amálgama de tempo parado do confinamento em que vivemos tantos meses, passavam pela rua, cruzando o alcatrão como cometas que furam o telão do firmamento, os homens que levavam comida aos portugueses fechados. Os rapazes das motas das entregas Uber, Glovo, o que fosse. Estavam na “linha da frente”, arriscando a vida no éter virulento, antes das vacinas generalizadas, antes de se saber se isto um dia passava. Pensei à varanda: que estranho tipo de herói, o que leva às costas uma mochila quadrada de cores eléctricas, a zarpar de mota.

E agora conheci o Daniel, brasileiro que rapou o crânio com curvas e linhas de máquina, parece relva de ouro. Está a ser julgado no tribunal, o jovem herói. Foi apanhado a conduzir uma mota das entregas “quando não estava legalmente habilitado para o fazer”. Condução ilegal. É verdade, senhor Daniel?

– Sim, é verdade. Só há uma coisa com que não concordo. A minha carta existe, só não está válida. Porque eu estou habilitado. Eu sei as regras do trânsito.

– Não quer dizer que esteja habilitado. Não tem carta válida?

– Não.

– Então não está habilitado.

Daniel faz entregas, é estafeta. E de súbito uma resposta certíssima às minhas antigas inquietações: o que move estes heróis do asfalto, de smartphone na mão, andando por onde mais ninguém anda, subindo escadas em prédios infectados?

– Agora faço de bicicleta e de trotinete. Nesta ocasião em que eu fui apanhado, eu estava mesmo com muita dificuldade para suprir os meus filhos e…

– Mas porque é que andava de mota?

– Foi para dobrar o rendimento, mesmo fazendo as contas ao combustível, vale a pena, porque de trotinete e de bicicleta tem um determinado limite…

Isto é, as entregas são mais demoradas, difíceis, cansativas e, claro, em menor número. Quanto aos acidentes, um dia se fará a contabilidade toda, mas morre-se de mota e também de trotinete, contra isso se fizeram leis novas. Daniel espera do Brasil a documentação para poder ter carta em Portugal.

– Ao dizer que é verdade, não o veio dizer porque alguém lhe disse para dizer?

Em resposta a este trava-línguas, Daniel disse que disse o que queria dizer. [Há muitas maneiras de dizer a verdade, ou só uma? Porque as formas da mentira são infinitas.]

“Já não trabalho com mota. Foi mesmo naquela aflição. Eu tinha a renda atrasada, o senhorio batendo na minha porta, a escola do meu filho para pagar. Eu não vou me desculpar apenas com a pandemia mas… agora já tenho várias profissões que posso fazer. Obra, jardinagem… Mas, na altura, não achei outra solução. Não havia! E o meu pensamento foi este: “Não tenho a quem pedir. Tenho a minha mãe e o meu irmão, mas a eles eu não posso. Não me vou desculpar com a pandemia… Mas eu, com a mota, na pandemia, consigo duplicar o rendimento.”

– A forma da sua vida… não lhe vai passar pela cabeça andar outra vez de mota?, perguntou a procuradora.

– Pode passar, mas não vou fazer. Eu só entrei naquele caso porque estava meio cego. Agora estou preparado. Sou artista e outras coisas. Sou jardineiro, pedreiro, barman, conferente de mercadorias. Não queria andar de mota. Eu estava separado, com um filho a viver comigo e contas por pagar.

A mãe de Daniel saiu com ele. Os olhos estavam húmidos. O rapaz da mota agora é rapaz da trotinete. A vida sobre rodas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)