O que não nos mata (às vezes) torna-nos mais fortes

Uma experiência desafiante tem potencial para aprendizagem, mas também para deixar marcas

Ninguém atravessa um grande sofrimento e sai dele exatamente igual. Depois de um trauma, há quem resista, quem recupere e quem adoeça. Mas há também quem sinta que cresce, que se desenvolve, que aprende, que se reinventa. Há quem olhe para a adversidade e veja as consequências boas que ela trouxe. A isso se chama crescimento pós-traumático.

Quando começou a trabalhar com mulheres com cancro da mama, ao mesmo tempo que preparava a sua tese de doutoramento, em 2007, a psicóloga clínica Sónia Silva conversava com as doentes para perceber as suas experiências e, com surpresa, começou a ver um padrão com que não contava: muitas referiam aspetos positivos da doença. “Algumas mulheres diziam-me coisas como: ‘Agora vejo a vida de outra forma’, ‘Percebo melhor quais são as minhas prioridades’, ‘Sei quem são as pessoas com quem realmente conto’, ‘Decidi mudar de emprego porque não gosto do meu’”, conta a psicóloga clínica da Liga Portuguesa Contra o Cancro, onde é responsável pela Unidade de Psico-Oncologia.

Isso era muito pouco coincidente com a bibliografia que tinha andado a ler até ali, que se focava muito no impacto negativo do diagnóstico de cancro, associado à ansiedade, à depressão, ao stress pós-traumático, às perturbações da imagem corporal. Movida pela curiosidade, começou a fazer outras pesquisas e foi-se deparando com muitos estudos internacionais que referiam os mesmos achados e falavam de um conceito recente: o crescimento pós-traumático.

Até há poucos anos, o estudo do trauma dividia as pessoas em três grupos: aqueles que eram resilientes e se adaptavam, mantendo alguma “normalidade” após o trauma; aqueles cujo sofrimento psicológico fazia derrapar para a doença, nomeadamente o stress pós-traumático; e aqueles que adoeciam mas, com apoio, recuperavam a sua condição de “normalidade” anterior. Em meados dos anos 1990, começou a perceber-se que esta história – como quase todas as histórias muito simples – estava errada. Ou pelo menos, estava incompleta: havia quem atravessasse o trauma e apontasse os seus benefícios, quem se sentisse transformado para melhor, como mostraram os estudos dos psicólogos americanos Richard G. Tedeschi e Lawrence G. Calhoun publicados nesta altura.

O crescimento pós-traumático, de acordo com estes autores, é um processo positivo e adaptativo depois da exposição a um acontecimento potencialmente traumático. “Após um processo de ruminação – o pensamento sobre o que aconteceu e sobre o seu significado – e, posteriormente, de deliberação sobre o acontecimento traumático, alguns sujeitos podem relatar um desenvolvimento adaptativo, funcional e filosófico que é qualitativamente superior ao seu estado pré-traumático”, explica Ângela Maia, professora do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho e investigadora na área das experiências adversas e traumáticas. “Segundo Tedeschi e Calhoun, os sujeitos com crescimento pós-traumático tendem a relatar uma nova filosofia de vida, um desenvolvimento de novas prioridades, maior conexão e empatia com os outros e um fortalecimento do sentido da sua identidade”, conclui.

Trauma ou crescimento?

Hoje a trama adensa-se ainda mais. Há um debate em curso relacionado com o crescimento pós-traumático: não poderá ele coexistir com o seu oposto, o stress pós-traumático? Os dados não são muito claros, mas há evidência que sugere que sim, apesar da inconsistência dos resultados que têm surgido. “Por um lado, vários estudos demonstraram uma relação linear positiva – isto é, que níveis elevados de stress pós-traumático estão relacionados com níveis elevados de crescimento pós-traumático -, enquanto outros demonstraram uma relação negativa, ou até inexistente”, refere Ângela Maia, da Universidade do Minho.

Perante estes dados contraditórios, há autores que teorizam que esta relação é, na verdade uma curva, assinala a investigadora: existe um certo grau de sofrimento psicológico, níveis médios de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT), que podem promover maiores níveis de crescimento pessoal. “Todavia, quando o PSPT for baixo ou muito alto, o crescimento pós-traumático será igualmente baixo. Esta relação curvilínea já foi empiricamente demonstrada, todavia ainda não revelou ser um dado consistente”, detalha.

Dois anos de pandemia foram terreno fértil para perceber manifestações de ambos os polos. O psicólogo clínico e psicoterapeuta João Patta Veloso, investigador do Centro de Trauma da Universidade de Coimbra, refere que, no seu trabalho com jovens, alguns têm conseguido ver aspetos positivos da pandemia, ressignificando-a como uma forma de criar novos recursos, mas que, no essencial, o que mais encontra são manifestações de uma imensa sensação de perda. Porque as pessoas precisam de apoio neste processo e muitas não o têm tido.

“O crescimento pós-traumático necessitaria de ter sido ajudado, através de campanhas de psicoeducação para esse crescimento, que não se fizeram. Em consequência, não havendo este empoderamento do indivíduo, vamos necessitar de fazer intervenções com modelos psicoterapêuticos mais orientados para o trauma”, realça o psicólogo. A propósito disso, manifesta uma preocupação. “Sendo agora necessária uma intervenção mais especializada, existirão técnicos com essa formação suficientes? Nem todos os modelos de intervenção têm validação científica para intervir e compreender o trauma. Quantos técnicos temos com formação em psicotraumatologia?”, questiona.

Aquilo que a literatura científica mostra é que a história da pessoa, a sua personalidade, os recursos pessoais e sociais, bem como as características e duração do evento são importantes no percurso que a pessoa faz após o evento adverso. Mas há outra coisa que pode fazer toda a diferença: o apoio atempado que recebe ou não, nomeadamente de primeiros socorros psicológicos. “Todos os processos que ajudam a diminuir a exposição aos eventos adversos ou potencialmente traumáticos, permitindo assumir o controlo, têm sempre uma indicação de prevenir o trauma e a instalação de recursos”, especifica o psicoterapeuta.

De qualquer forma tem de se alertar que a aplicação de primeiros socorros psicológicos ou outras intervenções de emergência só devem ser feitas por pessoas habilitadas. “As intervenções para contextos de crise são particularmente sensíveis e, por vezes, mais vale não fazer nada do que fazer mal: fazer mal pode significar retraumatizar, esse é um dos problemas da aplicação de intervenções com primeiros socorros psicológicos ou de emergência sem as devidas qualificações”, alerta.

Crescer não é ser mais feliz

No seu doutoramento sobre a experiência de cancro de mama, Sónia Silva acabou por concluir que a experiência de encontrar benefícios ou aspetos positivos da doença é relativamente prevalente: 60% das mulheres referiu experiências elevadas a extremas de desenvolvimento pós-traumático. A psicóloga prefere esta expressão: ‘desenvolvimento pós-traumático’, em vez do tradicional ‘crescimento pós-traumático’ por não alimentar a ideia de melhoria ou hierarquia. “A palavra ‘crescimento’ remete para a ideia de que se fica num patamar superior àquele que se tinha. E que as pessoas sintam ter-se desenvolvido com a experiência, não significa que estejam melhores, estão apenas mais próximas de si próprias e dos seus valores”, justifica.

Porque é preciso ter o cuidado de não romantizar o trauma. Uma experiência desafiante tem potencial para aprendizagem, mas também para deixar marcas. E, sobretudo, é preciso não achar que este crescimento ou desenvolvimento se faz sem dor, sem sofrimento, sem angústia e tristeza: é essencial viver primeiro todas essas emoções desagradáveis, antes de se conseguir algum alívio que proporcione outra visão e outro sentir da experiência.

“Há hoje uma tirania do positivo: temos de ‘pensar positivo’ para nos sentirmos bem”, critica a psicóloga. “É demasiado violento as pessoas serem constantemente pressionadas para estarem bem, sorrirem, serem felizes, eficazes, fazerem caminhadas, cumprirem recomendações, aceitarem.” A aceitação é habitualmente o fim do caminho, não o princípio. Primeiro é importante chorar, dar voz à tristeza, à angústia, à raiva. “A experiência de desenvolvimento surge precisamente desse processamento racional e emocional que a pessoa faz da experiência traumática. E não é possível se a pessoa estiver em negação, não quiser pensar nem falar no assunto, se se focar só nas tarefas do dia a dia e não fizer uma reflexão sobre o seu sofrimento.”

Outro aspeto central – e um mito que importa ser desmontado – é que a experiência pode ser positiva, mas não é superior à vontade que a pessoa tem de não ter vivido essa experiência. A psicóloga deixa um exemplo de uma mãe de um jovem doente oncológico que acompanha: abdicou da carreira profissional e conseguiu reinventar-se, centrando-se não só no que poderia fazer pelo filho, mas criando uma associação que ajuda outras crianças e famílias com a mesma doença. Ressignificou-se. “Obviamente que não é mais feliz, que preferia que o filho não estivesse doente e a passar por este sofrimento. O crescimento e o desenvolvimento significam mais amadurecimento, não mais felicidade.”