Margarida Rebelo Pinto

O que dizem as palavras


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Não há nada de errado em não ter um guerreiro no coração. Há homens que nascem guerreiros e outros que se tornam guerreiros, obrigados pelas circunstâncias.

As palavras que um povo escolhe dizem muito sobre ele. Na verdade, dizem quase tudo. No ano em que a pandemia invadiu o globo terrestre, a palavra escolhida pelos portugueses foi saudade. Talvez as saudades de um Mundo sem os tentáculos de um vírus imprevisível fossem mais fortes do que a ameaça do mesmo. Os ucranianos sofrem os horrores da guerra que dura há longos 60 dias, são raras as declarações por eles proferidas que não terminam com a expressão: “glória à Ucrânia”. É um povo que resiste e não se rende, determinado a lutar pelo seu país e a morrer por ele. “Slava Ukraini”, que se tornou o símbolo da alma ucraniana, tem origem num poema do século XIX do poeta Shevchenko, que reza: “Os nossos pensamentos, a nossa canção não morrerá, não perecerá… oh povo, é a nossa glória, glória da Ucrânia”. No século XX, tornou-se popular durante a guerra da independência entre 1917 e 1921. A História repete-se, tantas vezes pelos piores motivos.

São as circunstâncias que moldam o caráter e a necessidade que aguça o engenho. Porém, nem todos temos um guerreiro no coração. A capacidade para lutar e ripostar com igual violência a ataques inimigos não é a mesma nem em todas as pessoas, nem em todos os povos. No dia 29 de novembro de 1807, o rei D. João VI embarcou com a família real e a sua proeminente pança rumo ao Brasil, deixando a população entregue à sua sorte. O império português ficou à deriva, sem rei nem roque, o povo a chorar no cais, incrédulo e desiludido perante um soberano em fuga, na véspera da entrada triunfal de Junot em Lisboa. A Guerra Peninsular durou sete anos, na qual os civis portugueses armados com armas de caça, facas e outros utensílios caseiros recorreram a emboscadas e outras táticas de guerrilha contra o invasor napoleónico. Sempre fomos bons em guerrilha, começando com Viriato que combateu com estoicismo, inteligência e ardil a invasão romana entre 150 e 139 a.C., honrando a nossa condição de David perante Golias. Lutaram os que por cá ficaram, mais tarde, no Ultramar, lutaram os que para lá foram. Os homens da guerra voltavam traumatizados, sentiam uma enorme dificuldade em viver em paz, porque a guerra é como a doença, só quem a sofre na pele, sabe o que é, e é sempre uma derrota para a Humanidade.

Vivemos num paraíso à beira-mar plantado, habitado por um povo que não vai à guerra há quase 50 anos, que passou as últimas décadas a assistir às guerras do Mundo através da caixinha mágica. A nossa História recente moldou-nos para o pacifismo.

Não há nada de errado em não ter um guerreiro no coração. A paz anestesia os povos, enredando-os numa teia de conforto que sonhamos eterna. Há homens que nascem guerreiros e outros que se tornam guerreiros, obrigados pelas circunstâncias. No arquétipo da viagem do herói, este recusa sempre o primeiro chamamento, até que um evento o obriga a superar-se. No final da história, tudo o que ele deseja é regressar a casa, ao mundo normal, ou ao que resta dele, para o poder reconstruir e, enfim, descansar. Somos todos heróis à força, porque somos aquilo que a vida no obriga a ser, com a cabeça na luta e o coração cheio de saudades.