Margarida Rebelo Pinto

O pesadelo americano


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Povo estranho este que marcha heroicamente contra inimigos distantes para salvar o Mundo e que dispara em crianças que vão à escola.

Oxford, Michigan, 2021. Santa Clarita, Califórnia, 2019. Santa Fé, Texas, 2018. Parkland, Flórida, 2018. Benton, Kentucky, 2018. Roseburg, Oregon, 2015. Oakland, Califórnia, 2012. Newtown, Connecticut, 2012. Virginia Tech University, Virginia, 2007. Columbine, Colorado, 1999. E Uvalde, Texas, 2022. Estas são cidades e estados onde ocorreram ataques a tiro a escolas nas duas últimas décadas nos EUA, perpetrados quase sempre por jovens. O número total de vítimas destas chacinas calculadas ultrapassa as 150.

Por que razão ocorrem tais tragédias num país desenvolvido, o país dos bailes de formatura, das universidades da Ivy League, dos heróis espontâneos que aterram aviões comerciais de emergência sem nunca terem entrado num cockpit, dos sedutores valentaços do universo Marvel que salvam o Mundo, das heroínas virtuosas e corajosas da Disney, dos soldados que libertaram a Europa dos nazis? Porque o Novo Mundo cresceu assente numa cultura de violência trazida pelos colonos até ao quase extermínio dos povos locais. É o país dos cowboys, dos gangsters, da máfia organizada, dos “cement jobs” na era de Al Capone. Um país armado até aos dentes, desde o berço até à tumba.

De pequenino se torce o pepino. Em Alfama, quando o bairro era de quem lá nasceu, as crianças aprendiam a cantar fado nas tascas e vielas. Nos EUA, aprendem a disparar armas com os pais no quintal. A violência está presente na literatura, no cinema, na televisão e nas plataformas de streamming. Não há povo que se pele tanto por um thriller como os americanos; faz parte da cultura, como os “hot dogs” de rua e os ovos com bacon ao pequeno-almoço. Um dos melhores exemplos é a série “Ozark”, já na quarta temporada, com enorme sucesso, que relata a evolução de uma família americana normal que se envolve nas malhas do crime, nas quais navega com uma habilidade extraordinária, acabando a matar elementos da sua própria família, sempre com um ar “proper”, sem nunca perder a compostura nem manchar o polo Ralph Lauren de sangue. É a América penteada e politicamente correta, das cercas baixas pintadas de branco imaculado e dos jardins exemplares que esconde taras e perversões, tão magistralmente retratada por David Lynch em “Blue velvet”. A América que idolatra o poder e o dinheiro, que inventou o sonho americano, que adula o capitalismo e o usa para se definir por oposição ao espetro do socialismo que grassa na América Latina, um país fortemente polarizado e infantilizado, sobre o qual Winston Churchill disse “podemos sempre contar com os americanos para fazerem a coisa certa, depois de terem tentado tudo o resto”.

A violência alastra como uma praga e não passa apenas pelo uso das armas. Uma em cada cinco mulheres americanas foi vítima de violência sexual, sofrendo de tentativa de violação ou de violação consumada, 51% reportam violação por parte de seus parceiros. As violações em encontros, denominadas “date rape”, atingem percentagens assustadoras: 40%. São dados do site oficial do National Sexual Violence Resource Center.

Por debaixo do véu de normalidade de um sonho inventado (e não o são todos?), o pesadelo prevalece. Povo estranho este que marcha heroicamente contra inimigos distantes para salvar o Mundo e que dispara em crianças que vão à escola.