Margarida Rebelo Pinto

O peito às balas


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O Ocidente já esqueceu a pandemia, mas não irá esquecer a guerra. Dez milhões de pessoas como nós vão reconstruir as suas vidas fora do seu país. Ajudar também é uma forma de dar o peito às balas, em nome da liberdade.

A efeméride que celebra a Mulher passou quase despercebida neste tempo em que uma imensa nuvem negra paira sobre a Europa. Os meios de comunicação e as redes sociais estão dominados pelas mil faces da guerra: os bons, os maus, os que lutam, os que fogem, os que não conseguem escapar, os que ajudam, os que regressam para lutar, os que ficam para contar, os que se rendem e os que não se rendem. E no meio do terror e do caos, velhos, mulheres, crianças e animais caminham sem descanso até uma fronteira que seja um porto seguro. No terreno, ficam homens e mulheres que lutarão até ao fim.

Perante cenários extremos, restam-nos três caminhos: o heroísmo, a solidariedade ou a indiferença. Desde que o conflito começou, episódios de heroísmo e de solidariedade multiplicam-se: mulheres ucranianas entoam canções enquanto cortam e secam vegetais que depois são empacotados para entregar aos soldados que fazem sopa com água quente. O pianista David Martello viajou com o seu gato e o seu piano para tocar junto à fronteira da Polónia para os refugiados. Quero enviar uma mensagem de amor e de corações abertos, disse. O repertório é temático e inclui canções como “Take me home, country roads”, de John Denver. David deslocou-se depois para Lviv, onde toca todos os dias numa estação de comboio para aquecer os corações de quem chega de coração destroçado. É um homem numa missão, como qualquer herói. Miguel Stanley, o conhecido dentista, viajou com roupas, medicamentos e equipamento de primeiros socorros até à Polónia, onde reuniu um grupo de amigos portugueses que alugaram carros para trazer refugiados. Tal como ele, muitos portugueses, sozinhos, ou com o apoio de empresas ou de câmaras, partem com mantimentos e medicamentos para as fronteiras com o intuito de transportar e de acolher mulheres e crianças. Numa estação de comboio, mães polacas deixaram cadeiras de bebé com alimentos e brinquedos para as mães ucranianas que chegam com os filhos ao colo.

Os movimentos de solidariedade obedecem ao princípio da pertença: quando ajudamos, sentimos que estamos a contribuir para um bem maior. Estamos ligados aos outros e ao Mundo, fazemos parte de um objetivo comum. O ego vai para o banco dos suplentes. Ajudar os outros ajuda-nos a nós mesmos e todos gostamos de nos sentir um bocadinho heróis, nem que seja por um dia.

Voltando às mulheres e ao dia que as celebra, as notícias não são animadoras. Durante a pandemia, a violência doméstica disparou e perdeu-se terreno no lento e árduo caminho para a igualdade de salários. A pandemia atrasou tudo e obrigou as mulheres a um esforço ainda maior para conseguirem organizar debaixo do mesmo teto o marido com reuniões por zoom, os filhos que estudavam e brincavam em casa, o seu próprio trabalho e as inevitáveis tarefas domésticas do quotidiano, pois todos sabemos que a roupa não se passa sozinha nem os pratos voam sozinhos para a mesa.

O Ocidente já esqueceu a pandemia, mas não irá esquecer a guerra. Dez milhões de pessoas como nós vão reconstruir as suas vidas fora do seu país. Ajudar também é uma forma de dar o peito às balas, em nome da liberdade, e por todas as guerreiras que escolheram a linha da frente. Depois desta guerra, o mito do sexo fraco enaltecido pelo romantismo cairá por terra, espero que de vez.

As mulheres são mais fortes, escreveu Saramago. Arrisco-me a concordar.