Rui Cardoso Martins

O nosso traficante


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

É possível sentir ternura por alguém que prendemos? Creio que um casal de polícias teceu um inesperado fio de sentimentos com Julien, o reincidente. Iam de bicicleta junto ao Tejo, pedalando pelo Parque das Nações, era o último dia de Setembro e o Sol dourava as águas e olha, lá está ele no mesmo, o nosso Julien.

– Eu e a minha colega íamos a passar de bicicleta, ali na Expo, e visualizámos um indivíduo a consumir um produto suspeito de ser estupefaciente. Questionámos o senhor Julien se tinha mais alguma coisa, ele disse que sim e tirou do bolso uns pedaços, disse que não tinha mais nada. Foi submetido a uma revista e no casaco, dentro de um bolso, tinha várias embalagens de estupefaciente, nomeadamente haxixe e erva.

A procuradora continua:

– Foi tudo o que encontraram?

– Sim. Tinha também uma navalha e um telefone.

Julien, continua o polícia, estava sem identificação. Mas foram com ele aonde dorme e o senhorio confirmou quem era o homem.

– Mas eu também já tinha visto a sua identificação noutras alturas, por situações idênticas naquele local.

Um cartão de cidadão francês.

– Venda não vi nenhuma, mas ele estava preparado para vender produto a um amigo ou conhecido dele. Porque nós estávamos a falar e alguém lhe ligou e ele desligou imediatamente o telefone. Dos nossos tempos, ele tinha já vários autos. Estava tudo embalado num saco de aperto rápido e tudo separado, quase de certeza para vender, da forma como estava acondicionado.

Mas é quando entra a jovem polícia, loira, na sua camisa azul-bebé da PSP, que sabemos que a coisa ficará memorável. A juíza pergunta-lhe se é parente, se é amiga, inimiga, se tem alguma relação de dependência com o arguido Julien. Ela diz que não.

– Jura dizer a verdade e só a verdade?

– Sim.

– Tem de jurar.

– Juro. É a primeira vez que estou aqui, num julgamento…

– A sério?!

– Sim…

– Bem! Olhe que é uma primeira vez de muitas, provavelmente!

– Sim.

– Vamos tentar levar isto o melhor que se puder…

Risos. Agora, na mulher-polícia de bicicleta, há esta nova ligação com Julien: não irá esquecer o homem que costuma capturar com doses de haxixe nas ruas largas, oxigenadas, da antiga Expo. Há ali outros casos, homens estendidos nas sombras das arcadas dos pavilhões. Em tempos, um solitário colérico construiu um iglu de cartões com perguntas rabiscadas contra o Mundo, o trabalho, o desemprego, a normalidade, e deitou-se debaixo dos cartões junto à estátua do Homem-Sol. Noutra altura, um rapaz de cabelos proféticos acusou os jovens de não acreditarem literalmente na Bíblia e se condenarem ao Inferno, o que muito o alegrava.

– Vai ter de falar verdade, sob pena de procedimento criminal… eu ia a dizer “como sabe”… mas pelos vistos fica a saber agora, continua a juíza, ainda a rir.

– Ele já se tinha cruzado por nós várias vezes, já nos tinha mostrado o documento.

Depois, um grande sorriso da mulher-polícia. Julien falou-lhes honestamente:

– Disse-nos que vendia aquele produto para pagar a sua renda.

Costumava estar ali a fumar e a vender, o casal de polícias passava de bicicleta e tudo recomeçava. Não fugia, era uma espécie de campeonato de observações ao longe, pedais, rodas, perguntas, revistas de material. Trazia com ele, a 30 de Setembro de 2020, em plena tarde de sol de confinamento, “cerca de 200 doses médias diárias”, “tráfico de estupefacientes de menor gravidade”. Quase dois anos depois, graças à veterania de Julien (mas não apareceu no tribunal, hoje ninguém o viu…), uma polícia estreou-se finalmente nos julgamentos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)