O mundo extravagante dos acordos pré-nupciais

O casal sensação do início dos anos 2000 voltou à ribalta ao reatar quase 20 anos depois. Mas é o acordo pré-nupcial que tem dado que falar: Jennifer Lopez exige sexo quatro vezes por semana ao futuro marido, Ben Affleck (Foto: DR)

Indemnizações milionárias por infidelidade, milhões de euros por cada filho, sexo quatro vezes por semana: as cláusulas dos contratos que os casais mediáticos de Hollywood assinam antes de trocarem alianças antecipam tudo e mais um par de botas. Um autêntico fenómeno cultural. Mas será que isto é possível em Portugal? E há benefícios em antecipar uma separação ainda antes de dizer o “sim”?

A história de amor de Jennifer Lopez e Ben Affleck é digna de filme de Hollywood. Quase vinte anos depois, o casal que começou a namorar em 2001 – e até chegou a estar de casamento marcado, união que nunca haveria de acontecer – voltou a reencontrar-se, a apaixonar-se e o anúncio do noivado veio num ápice, qual repetição de um romance badalado no início dos anos 2000 que deixaram a meio. Um anel de noivado com uma esmeralda a estimar-se nos dez milhões de euros e os holofotes não falharam, viraram-se outra vez para a cantora e para o ator, um dos mais famosos casais do Mundo. Como se a novela romântica e hipermediática não bastasse, o acordo pré-nupcial caiu nas páginas de jornais.

Segundo o jornal espanhol “La Vanguardia”, uma das cláusulas exigidas por Jennifer Lopez é a obrigação de o casal ter relações sexuais pelo menos quatro vezes por semana. E, como é óbvio, o burburinho disparou. Pouco mais se sabe, talvez o documentário intimista sobre a vida de Jennifer Lopez – “Halftime”, que será lançado em junho, na Netflix – venha a desvendar mais. Certo é que os acordos pré-nupciais à moda de Hollywood, que vão muito além das fortunas gordas das celebridades, não são novidade. Basta recuarmos a 2019, quando os rumores de uma traição de Justin Timberlake a Jessica Biel puseram a nu o contrato pré-nupcial: o casal que deu o nó em 2012 terá acordado uma cláusula de infidelidade, que estipulava que se Timberlake traísse Jessica teria de lhe pagar quase meio milhão de euros.

Justin Timberlake e Jessica Biel definiram uma cláusula de infidelidade

Extravagante? Talvez não. Se em Portugal a reforma do Código Civil de 2008 acabou com o conceito de culpa no divórcio, que era fundamental para atribuir compensações ao ex-cônjuge, em terras do Tio Sam ainda se tentam encontrar culpados na hora da separação, com implicações em indemnizações, na divisão do património ou na guarda dos filhos. “Além disso, no nosso país, a lei fixa e limita muito bem os quadros contratuais aplicados aos diferentes regimes (comunhão de bens adquiridos, comunhão geral de bens ou separação de bens). O que não acontece no Direito anglo-saxónico, o que faz com que tenham que regular tudo e mais um par de botas”, explica o advogado da área do Direito de Família João Perry da Câmara. “Lá é prática comum que, ao fim de dez anos de casamento, o património de cada um passe a ser do casal. Também daí a preocupação com estes contratos. Na hora de se divorciarem, podem chegar a perder metade da fortuna.”

O choque perante cláusulas “hollywoodescas” para quem assiste à distância cultural até pode ser grande, contudo nos países anglo-saxónicos estes contratos “têm de ser muito detalhados para serem efetivos e, mesmo assim, são facilmente contestados em tribunal”. Tão detalhados quanto maior a fortuna e mais mediático é o casal. O acordo pré-nupcial de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook (agora a empresa foi renomeada Meta), e da mulher, Priscilla Chan, que se casaram em 2012 depois de se terem conhecido na Universidade de Harvard, é espelho disso mesmo. O casal colocou por escrito – imagine-se – a exigência de os dois estarem juntos pelo menos uma vez por semana. E, diz-se, até os minutos (no mínimo, cem) estão contabilizados no contrato.

Mark Zuckerberg concordou ter de estar pelo menos uma vez por semana com a mulher

Mas desengane-se quem pensa que estes acordos são feitos às três pancadas, há todo um rol de requisitos. “Tem que se demonstrar que cada parte estava bem informada, não pode ser celebrado muito próximo nem muito distante da data do casamento, para garantir que não houve qualquer pressão nem perder atualidade. Tem que haver aconselhamento de parte a parte e não pode ser o mesmo advogado a aconselhar os dois lados”, refere Perry da Câmara.

As extravagâncias: de Tiger Woods a Beyoncé

Não é para menos, a maior parte dos grandes divórcios internacionais giram precisamente à volta dos excêntricos contratos. Ainda assim, querer ver o dia antes de o Sol nascer não é tarefa fácil e a realidade é sempre muito mais rica do que a imaginação humana faz prever. Veja-se o divórcio, em 2016, de Angelina Jolie e Brad Pitt, que acabou numa longa disputa mediática (o processo só ficou concluído em 2019), apesar do contrato pré-nupcial desenhado ao pormenor. Diz a imprensa norte-americana que o acordo previa, por exemplo, que, se Brad Pitt traísse a mulher, perderia a custódia dos filhos. Também podemos olhar para um dos mais caros divórcios da história de Hollywood: o de Tiger Woods e Elin Nordegren, que foi muito além do que estava estipulado no acordo pré-nupcial, depois de se saber que o golfista traiu a ex-modelo sueca com dezenas de mulheres, um escândalo sexual que acabou com Nordegren a receber mais de cem milhões de euros.

O contrato pré-nupcial de pouco valeu a Tiger Woods quando rebentou o escândalo sexual que revelou que o golfista traiu Elin Nordegren com dezenas de mulheres. A ex-modelo recebeu mais de cem milhões de euros, muito além do que tinham definido

Na hora de desenhar cláusulas milimétricas, tudo vale, mas nem tudo se antecipa. Embora se tente. E os exemplos não se esgotam. Os pormenores entram até no campo das adições. Aí, Nicole Kidman preveniu-se antes de casar com o astro da música country Keith Urban, que lutou contra a dependência de cocaína no passado. A atriz terá uma cláusula no contrato pré-nupcial que penaliza financeiramente o cantor caso volte a consumir drogas.

O passado de dependência da cocaína do músico de country Keith Urban levou Nicole Kidman a prevenir-se no acordo que assinaram antes do casamento: tem uma cláusula de escape caso o cantor volte a consumir drogas

No mundo dos valores astronómicos, é aí que se movem Beyoncé e Jay-Z. Antes de se casarem, em 2008, acordaram que, em caso de divórcio, a cantora receberia cerca de cinco milhões de euros por cada filho que tivessem. São três até agora, ou seja, a conta está nos 15 milhões. Mas não é só: alguns meios garantem que, em caso de separação, Beyoncé ainda receberá quase um milhão de euros por cada ano que estiveram casados.

O que é possível no nosso país

Então, e em Portugal, estes contratos são possíveis? Comecemos pelo princípio. No nosso país, o regime de bens que é definido por regra na conservatória no momento de dizer o “sim” é a comunhão de bens adquiridos. Mas os casais podem optar por outro. Para isso, é preciso fazer uma convenção antenupcial – assim se chama cá – em que podem escolher a separação de bens, a comunhão geral de bens ou até um regime à mercê dos noivos com outros detalhes. E aí será que podem entrar cláusulas mais extravagantes?

Margarida Portugal, advogada que trabalha na área do Direito de Família, diz que não. Se no Direito anglo-saxónico as questões de ordem pessoal entram em força nos contratos pré-nupciais, por cá a lei prevê essencialmente questões de natureza patrimonial e sucessória. “Estes acordos estrambólicos à Hollywood não existem cá. Como em Portugal não há culpa no divórcio, as questões da infidelidade, de quem lava a louça, se fazem sexo quatro vezes por semana, ou se o cônjuge se recusa a cozinhar frango assado ao domingo não fazem sentido”, ironiza. As grandes questões, nomeadamente ligadas à guarda dos filhos (como no acordo entre Pitt e Jolie), são resolvidas no momento do divórcio e não do casamento. “Nós tratamos no fim e não no princípio, o que há a prever é acautelado na separação.”

Brad Pitt e Angelina Jolie previam que o ator perderia a custódia dos filhos em caso de traição

João Perry da Câmara segue-lhe o raciocínio. “Em Portugal, uma estipulação como a do acordo de Jennifer Lopez seria impensável, até tenho dúvidas que não fosse inconstitucional.” Mas o advogado acredita que há espaço numa convenção antenupcial para cláusulas que prevejam, por exemplo, a educação religiosa dos filhos. Só que não é prática. Noutras questões, como a definição de uma relação aberta ou da divisão de despesas na hora de casar, é perentório: “Isso não é possível”. Até porque a lei portuguesa tem uma série de limitações ao definir os direitos e deveres conjugais: fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.

Apesar de Margarida Portugal ver os acordos pré-nupciais anglo-saxónicos como um “disparate” (“a existirem cá, tinha que se prever um milhão de coisas, além de ter um efeito perverso muito grande por se saber as cláusulas que o outro não pode violar, o que é terreno pantanoso”), defende que os portugueses deviam ter a cultura de antecipar algumas questões. “Toda a gente devia ser obrigada a fazer uma convenção antenupcial, a definir o regime de bens. Hoje, o regime automático, em caso de silêncio, é a comunhão de bens adquiridos, o que gera imensos problemas ao nível das partilhas. As pessoas não querem gastar dinheiro nem tempo a fazer uma escritura, até porque levanta questões de desconfiança e melindre logo na hora de casar. O timing é péssimo, mas isso poupava muitos problemas no divórcio.”

Em caso de separação, Beyoncé embolsa cerca de cinco milhões por cada filho em comum com Jay-Z: têm três

Há uma certeza: o regime de bens adquiridos ainda é, de longe, o mais comum nos casamentos em Portugal. Mas, nos últimos anos, a escolha pela separação de bens tem vindo a crescer, uma garantia dos especialistas, que sugerem que há mais consciência social. Sobretudo, diz Perry da Câmara, por “casais que têm património ou profissões altamente rentáveis”.

Segundo Inês Caprichoso, profissional de mediação familiar (trabalha com os dois cônjuges em pé de igualdade, ao contrário da advocacia que só defende uma das partes), “90% dos casais que hoje fazem uma convenção antenupcial é para definirem o regime de separação de bens”. E há vantagens? “Sim, é meio caminho andado para as coisas numa separação serem mais simples. Só têm que se dividir os bens comuns. De resto, se foi ela que comprou o robô de cozinha, o robô de cozinha é dela, não há discussões.”

O contrato vai mais longe e a cantora ainda receberá uma verba choruda por cada ano de matrimónio, só por ter estado casada

E pese embora a jurista sustente que o debate destes temas deve acontecer às portas do casamento, ao pôr os olhos no direito anglo-saxónico leva as mãos à cabeça. “Aqueles contratos preveem as coisas mais estapafúrdias e só aumentam o nível de litigância. Como é que Jennifer Lopez consegue alegar o incumprimento daquela cláusula? Apesar de tudo, o nosso regime é mais equilibrado, há regras, mais regulação. Não contem com os advogados em Portugal para estipularem o número de relações sexuais por semana”, brinca.

Disputas por Bimbys, faqueiros ou bicicletas

Por cá, é na hora do divórcio que se assiste aos festivais das disputas mais bizarras entre casais. No extremo do grave, surgem cada vez mais investigações de paternidade. “Numa tentativa, muitas vezes, de escapar ao pagamento da pensão de alimentos ou para arranjar argumentos para a separação em si. É o limite do tanque da roupa”, relata a advogada Margarida Portugal, a quem não faltam histórias insólitas. “Desde discussões por causa de um aspirador, de um faqueiro que foi oferecido ou de uma bicicleta. E até já tive pedidos de revogação de doações ao cônjuge por ingratidão.”

No top da mediadora familiar Inês Caprichoso estão as “lutas” pelo robô de cozinha Bimby. “Quando há filhos, as questões mais discutidas são as responsabilidades parentais, que têm de ser decididas em sede de divórcio. Logo a seguir são os bens, tem de se fazer uma lista e dividir.” Já assistiu a um pouco de tudo, desde quem fica com a casa, ou com o carro, até à mais recente tendência: a Bimby. “É um fenómeno e tem sido um problema.”

Antecipar problemas: bom ou mau?

No campo da psicologia, afinal, antecipar que o casamento pode chegar ao fim, antes mesmo de começar, com contratos pré-nupciais extensos, é sinal de maturidade ou pode debilitar uma relação à partida? “Pode minar. É, no fundo, antagónico ao que é um casamento. Imagine-se que caso aos 25 anos, aos 40 sou seguramente uma pessoa diferente. Ter tudo definido num contrato rígido é muito limitador do nosso desenvolvimento enquanto pessoas. Hoje, posso achar que a infidelidade deve ser punida e daqui a dez anos achar que é admissível ter uma relação aberta.” Catarina Lucas, terapeuta de casal, não tem dúvidas dos benefícios de as sociedades ocidentais estarem mais conscientes de eventuais separações. Mas é um pau de dois bicos. “Aos 60, vou estar presa a um contrato que assinei aos 30? Olhando para o caso da Jennifer Lopez, já nem posso perder o desejo sexual? É muito castrador. Vou ter sexo porque é obrigatório, qual é a piada disto?”, questiona.

Pondo os pés em Portugal, a terapeuta admite que a simples questão da separação de bens “já é encarada com suspeição”. As relações também têm um quê de cultural, apesar dos tempos. Numa era em que os divórcios são muito comuns, sabe que há uma descrença generalizada no amor. “Mas há outra coisa, que é o valor simbólico do casamento. Não é só o contrato, hoje é muito mais simbólico. Entrar numa relação no pressuposto de que há o meu e o teu, não há o nosso, é estar a colocar barreiras logo à partida.” E o que mantém as relações, lembra, “não é a questão legal, é a emocional”. Aliás, em terapia, o tema das divisões extremas (comprar a casa no nome só de um cônjuge ou não ter conta bancária conjunta) é recorrente e fator de discussão.

Se o romantismo parece abalado com as fronteiras que se erguem à volta de um contrato, talvez tenha sido isso mesmo que levou o cantor Justin Bieber e a modelo Hailey Baldwin a não assinarem qualquer acordo antes de subirem ao altar, em 2018. É a garantia de muita imprensa norte-americana, para espanto de muitos.

A contrastar com os detalhes excêntricos dos contratos pré-nupciais à moda de Hollywood, o jovem casal mediático Justin Bieber e Hailey Baldwin subiu ao altar, em segredo, há quatro anos, sem assinar qualquer acordo

Pedro Frazão, terapeuta familiar da Casa Estrela-do-Mar, advoga que “qualquer opção é legítima desde que as pessoas se sintam alinhadas”. Mas assume que abordar o assunto antes de trocar alianças, seja qual for o caminho, é “benéfico” e não vê nisso “uma quebra do sentido de paixão”. “Haverá pessoas que encaram este debate como uma ameaça simbólica, sinal de falta de confiança, mas não se trata só da antecipação do fim. O regime de bens é parte integrante da vida de casal.” E nisso, considera, pessoas que tenham histórias passadas familiares tendem a tentar prevenir-se mais.

Se mergulharmos em detalhes profundos, em cláusulas à escala de Hollywood, para lá dos bens, aí o psicólogo torce o nariz. “Acho que é perigoso. Para nós, no sul da Europa, por questões culturais, é uma perversão do que é a base de um casamento, uma artificialidade. É impossível trazer uma previsibilidade total. Há coisas que têm de ser negociadas à medida que vão surgindo e que se vai amadurecendo.” Não é essa, porém, a regra em Hollywood, onde os contratos pré-nupciais mirabolantes continuam a fazer manchetes e a alimentar-nos o imaginário sobre a vida das estrelas mais mediáticas do Globo.