O meu trauma, que não é meu

Depressão e ansiedade são as doenças psiquiátricas mais comuns

Viver com alguém que sofre de stress pós-traumático pode ser motivo de grande sofrimento. Pela exposição às descrições vívidas de horror e pelo comportamento perturbador que a vítima pode ter. Também elas vitimizadas, muitas famílias de ex-combatentes na Guerra Colonial sofrem de perturbação de stress pós-traumático secundário. Porque o trauma que não era delas passou a ser.

O mais exuberante eram os pesadelos. Rita (que não se chama Rita) acordava durante a noite a ouvir José (que não chama José) a deambular e a gritar. Eram palavras que o seu vocabulário de criança não lhe permitia ainda compreender. “Cuidado com a granada” ou “Isto é uma emboscada”. Nessas alturas em que confundia o passado com o presente, o pai – ou “o senhor meu pai”, como Rita se refere a ele por vezes – contava também fragmentos de histórias de horror. “Lembro-me de ele falar em braços e pés a rebolar, de valas com corpos, de repetir ‘as crianças, as crianças’. E eu, muito miúda, não tinha visto nada daquilo, mas imaginava. A gente quando ouve estas coisas não consegue não as imaginar na nossa cabeça. E tinha muito medo, sobretudo à noite. Porque ia dormir sem saber o que podia acontecer.”

Tinha medo à noite, mas também durante o dia. Mesmo quando não estava aos berros por causa dos sonhos, o pai vociferava por outra coisa qualquer. “Gritava muito. Ralhava por tudo. Implicava. Era muito agressivo, sobretudo com a minha mãe. Ela sofreu violência doméstica durante décadas.” Mais tarde, encarniçou-se com único filho homem. “Ameaçava muitas vezes matar o meu irmão.” E o que faziam, todos, nessas alturas? “Nada.” Aprenderam cedo a fingir que não existiam. “Ficávamos todos quietos, para não o contrariar nem irritar mais. O melhor era ficar quieto”, repete. E foi assim que Rita, as duas irmãs e o irmão cresceram.

O pai nunca foi de contar histórias dos 18 meses que passou na Guiné, durante a Guerra Colonial. Como diz Rita, “não se abria”. Ou pelo menos não o fazia em casa. Perceberam que, ainda que com pouco sucesso, o fazia fora. E descobriram por causa do saco. Há 20 anos, já Rita tinha 19, o pai começou a andar sempre com um saco atrás. “Levava-o quando saía de casa e punha-o debaixo da cama quando ia dormir”, rebobina. As perguntas sobre o saco, como as outras, ficavam sem resposta e provocavam crises de ira. Um dia, a família espreitou o que lá estava dentro às escondidas.

Eram medicamentos. Muitos. Antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos, sedativos. Havia também o contacto de uma médica psiquiatra e um papel que dava um nome ao comportamento do pai: perturbação de stress pós-traumático (PSPT).

Quase um milhão de homens portugueses estiveram na Guerra Colonial (1961-1974), estima-se que mais de cem mil sofram ou tenham sofrido de stress pós-traumático. E muitos transmitiram-no às famílias. Apesar de naquele saco não haver nenhum papel que desse nome ao sofrimento psicológico da mulher e dos filhos, a condição está nomeada: chama-se perturbação de stress pós-traumático secundário.

Duas vezes vítimas

Um trauma psicológico, explica a médica psiquiatra Luísa Sales, do Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Coimbra e coordenadora do Observatório do Trauma, pode descrever-se “como uma experiência assustadora desencadeada por um acontecimento externo, em geral inesperado e intenso, passível de pôr em causa a sobrevivência física e/ou psicológica do próprio ou de outros e que provoca descontinuidade, rutura em relação às crenças e padrões de segurança anteriores”.

Até 2013, o Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, o compêndio da Associação Americana de Psiquiatria que lista as perturbações mentais e critérios para diagnosticá-los, só aplicava a palavra “trauma” a eventos vivenciados ou assistidos pelo próprio. Mas, na sua última versão, aceita-se que um trauma se possa desenvolver em pessoas que tiveram contacto, não com o evento em si, mas com vítimas de trauma.

A perturbação do stress pós-traumático secundário, prossegue a psiquiatra, “manifesta-se sobretudo em pessoas que cuidam ou lidam muito de perto com portadores de longo prazo de perturbação de stress pós-traumático, como os cônjuges e os filhos, e em profissionais de saúde ou de profissões de suporte que são prolongadamente sujeitos a gravosas e continuadas manifestações do sofrimento provocado por experiências traumáticas”.

Designa-se trauma secundário, mas na verdade é que é mais do que isso: as famílias são vítimas do que não viveram, mas também do que vivem. “São vítimas secundárias porque estão a receber algo em ‘segunda mão’ – ouvem as histórias horríveis, assistem aos pesadelos, ao pegar na arma – e não é possível ficar indiferente a isso”, começa por realçar Susana Pedras, psicóloga clínica, com uma tese de mestrado sobre a vitimização secundária dos filhos de ex-combatentes. Mas, continua, também há um trauma direto, que nasce da experiência vivida no quotidiano. “As mulheres e os filhos são vítimas de agressividade, de raiva, de irritabilidade constante, de exigência e de rigidez. Estão sempre em alerta. Não querem que ninguém faça nada que chateie o marido ou pai. Pensam constantemente: ‘Será que vai gostar do almoço?’, ’Será que se vai irritar se eu perguntar isso?’. Estão sempre na angústia de o tentar manter bem. E isso é uma vitimização direta.” Os homens foram vítimas, as famílias são-no por duas vezes: pelo contacto com as experiências traumatizantes originais e porque lidam com uma pessoa que é, ela própria, traumatizante.

Os genes, os fatores que protegem e os que fragilizam

Além disso, investigações na área da epigenética, sobretudo com filhos e netos de sobreviventes do Holocausto, têm mostrado que há a possibilidade de o trauma modular a expressão dos genes. Grosso modo, de ser herdado. “É um tema relevante nas pesquisas atuais: a possível transmissão intergeracional da vulnerabilidade ao trauma. Estudos com segunda e terceira gerações de sobreviventes do Holocausto ou com filhos de ex-combatentes apontam para que esses descendentes apresentem uma acrescida vulnerabilidade psicológica em contextos de ameaça, manifestando maior predisposição para vir a desenvolver patologia”, especifica Luísa Sales.

Assim como nem todas as pessoas expostas a um evento traumático sofrem de stress pós-traumático, nem todas as famílias expostas a uma pessoa traumatizada sofrem de stress pós-traumático secundário. Há contextos que protegem, outros que fragilizam. Apesar disso, sobretudo no caso das famílias dos ex-combatentes, há fatores de risco naturalmente presentes – como ser criança quando se é exposto à situação – e fatores protetores que, para a maioria, não estiveram presentes, como a informação sobre a doença e o suporte na comunidade tanto para o doente primário como para a família. Quando voltaram da guerra para onde foram enviados, estes homens foram deixados sozinhos.

Há dez anos, a família de José percebeu que o problema já não era apenas o pai estar no fundo do poço. Era estar a arrastá-los com ele. “Foi o fundo do poço, desconfiava de todos. Ameaçava o meu irmão com uma pistola. A minha mãe dormia com as chaves de casa escondidas debaixo da almofada e, mesmo assim, ele uma vez saiu de casa pela janela. Ela já tinha muito medo de estar sozinha com ele. Era uma coisa fora da graça de Deus”, resume a filha.

Foi internado em Psiquiatria, compulsivamente. “E se não tem sido internado não sei se nós todos estávamos cá hoje. Estava tipo psicopata”, acrescenta Rita. Um episódio também muito traumatizante para ela: ver o pai sair algemado e na horizontal, carregado por três homens.

Hoje, com 71 anos e um quadro de demência, José só vai dormir a casa, passando o restante período num centro de dia. “Está mais tranquilo. Muito medicado. A minha mãe também tem uma vida mais tranquila, já não estava a aguentar tê-lo em casa o dia todo. Estamos todos mais descansados”, diz a filha, que tem contado com o suporte da APOIAR – Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas de Stress de Guerra.

Mas o que viveu ainda está muito presente. Tão presente que, sem reparar, Rita usa muitas palavras bélicas para se definir a si e aos seus. “Sou uma lutadora.” “A minha mãe foi uma mulher de armas.” “Nunca desisto, vou à guerra.” É resiliente, sim, mas não nega que a dureza da infância e o “ter de crescer muito depressa” deixaram marcas a todos.

Susana Oliveira, psicóloga clínica que trabalha com vítimas de stress pós-traumático há mais de 20 anos, sublinha que, na sua tese de mestrado sobre a traumatização secundária das famílias dos ex-combatentes da Guerra Colonial, verificou que a maioria das mulheres de ex-combatentes com PSPT apresentava stress pós-traumático secundário e sintomatologia de depressão e ansiedade similar à dos seus maridos, embora de forma menos severa. “Apurámos ainda que a depressão e ansiedade das mães tem influência na sintomatologia depressiva e ansiosa dos filhos e que estas famílias recorrem mais a estratégias de ‘coping’ negativas e são menos resilientes.” Já os estudos com os filhos, detalha, têm demonstrado que “exibem mais problemas de comportamento, depressão, ansiedade e insucesso escolar, o que pode estar associado a atitudes paternas que oscilam entre a hiperproteção, controlo e comportamento de agressividade”.

“Já todos tivemos coisas de cabeça, os quatro irmãos: depressões, ansiedades, problemas de sono”, reconhece Rita. E, acabada de chegar de uma consulta médica, partilha: “A doutora achou que eu devia tomar antidepressivos outra vez. Mas pensei logo no meu pai, sabe? Vi logo a imagem dele com o saco dos medicamentos e, às vezes, tenho medo. Será que vou ficar como ele?”.

Rita acredita que um dos principais problemas do pai foi não ter tido oportunidade de falar do que lhe aconteceu quando voltou da guerra. “É preciso falar, se não se fala, as coisas ficam cá a moer. Acho que foi isso que lhe aconteceu.” Mas não é fácil. “Há coisas que as pessoas querem deixar enfiadas na gaveta, sabe? Esquecidas. Porque quando se abre a gaveta, essas coisas antigas saltam cá para fora para nos fazer mal.” E, agora, já não está a falar do pai, mas de si própria.