
O objeto escolhido pela escritora e jornalista Alice Vieira.
Esta espiga faz, em agosto, 39 anos.
Anda comigo para toda a parte. A história conta-se depressa.
Em agosto de 1988 eu estava no Brasil, mais exatamente em São Paulo. Na noite do dia 25, estava com um grupo de amigos a jantar num boteco bem longe do centro da cidade, mas de que nós gostávamos muito. A televisão estava acesa e de repente começamos a ouvir o locutor dizer que Lisboa estava a arder. Numa época sem telemóveis, não tínhamos outra fonte de informação. E segundo se depreendia da notícia, era que todo o centro histórico de Lisboa estava em chamas.
Levanto-me da mesa, e digo aos meus amigos que me vou já embora, apanhar o primeiro avião para Lisboa. Eles bem me tentaram dissuadir, “olha as horas, aqui neste cu de Judas de São Paulo vais a pé pelas ruas e és logo atacada!”. Mas eu nem os ouvia, saí porta fora e desatei a correr por aquelas ruas escuras e desertas.
De repente vejo um homem vir na minha direção, esfarrapado, bêbedo, apontando para mim e chamando “moça! Ó moça!” Pensei que ia ser o último dia da minha vida, mas estava longe de tudo, não podia fazer nada, ele continuava a correr atrás de mim, até que me agarrou – e me deu um grande abraço. Vi que estava a chorar e que tinha uma espiga na mão.
“Moça, moça, esta espiga é para si, e deixe-me abraçá-la porque eu estou muito triste porque Lisboa está a arder.”
E lá ficámos, abraçados, a chorar, no meio da rua deserta. Garanto: não há acordos, tratados, pactos, entre o Brasil e Portugal com mais força do que esta espiga. Que anda sempre comigo.
Escritora, jornalista
79 anos