Margarida Rebelo Pinto

O maior ladrão


Crónica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O problema é pensarmos que temos tempo. Mas não temos, porque é o tempo que nos tem nas suas mãos. O tempo é o infinito, uma cordilheira que dá a volta ao Mundo, uma muralha impossível de escalar.

Com o final de mais um ano, todos tentamos, de forma mais explícita ou secreta, fazer o balanço dos últimos 365 dias. Há quem apague números, mensagens e fotografias do telefone e quem escreva as intenções para o ano que começa. Fazemos promessas que queremos acreditar conseguir levar até ao fim: cortar nos doces, ir visitar mais vezes quem precisa da nossa companhia, não falhar o ginásio, não falhar na vida. No final de mais um ano de travessia de uma realidade até agora desconhecida, encolhemos os ombros à realidade, desejando que um dia tudo volte ao normal. O vírus das incontáveis mutações veio para ficar, temos de aprender a viver com ele e com tudo de mau que nos trouxe: incerteza, isolamento, atraso no diagnóstico e tratamento de outras doenças, a perda de amigos e familiares. Como sempre acontece durante uma guerra, vamos fazendo a nossa vida porque o tempo não pára, o tempo é o maior ladrão.

Às vezes penso que não é o tempo que passa, nós é que passamos por ele. Somos passageiros fugazes no comboio da eternidade que vai parando aqui e ali, para nos dar a oportunidade de escolher em que estação saímos. Sempre que precisamos, voltamos à plataforma e apanhamos outro comboio, noutra direção. E nunca é o mesmo comboio, mas pensamos que sim. Pensamos que podemos voltar ao lugar onde fomos felizes. Pensamos que aquela grande paixão perdida um dia volta nas asas do desejo, num barco de papel que se chama saudade, ou desce, por mera casualidade, no mesmo apeadeiro onde as linhas das escolhas se cruzam. Entretanto, os dias vividos não mais voltarão. O passado é a chave de uma porta que já não existe, um país estranho onde ninguém mora. O futuro é incerto e está sempre em movimento, fazemos planos e a vida troca-nos as voltas, a vida é sempre outra coisa.

Porque temos tanta dificuldade em viver o presente? Talvez porque não o encaramos como um presente. Ou porque é mais fácil refugiar o corpo e o espírito na ilha perdida das memórias. Ou por não entendermos que o aqui e o agora são a única realidade que temos. Precisamos de recordar, o passado é o nosso património afetivo, e de sonhar com o futuro, porque os sonhos dão-nos força para continuar, mesmo que as linhas tenham sido previamente desenhadas por uma mão invisível a que uns chamam Deus e outros destino. Precisamos de acreditar que somos o maquinista, que decidimos a que velocidade a grande máquina da vida atravessa montes e vales e que podemos mudar de direção: parar, descer da carruagem, ir à linha fazer a agulha e continuar a viagem. Escolher um novo caminho, mesmo sem saber ao certo onde nos leva, é sempre melhor do que ficar no banco da estação do comboio à espera que passe o autocarro.

O problema é pensarmos que temos tempo. Mas não temos, porque é o tempo que nos tem nas suas mãos. O tempo é o infinito, uma cordilheira que dá a volta ao Mundo, uma muralha impossível de escalar. Mas também pode ser o que fazemos dele e com ele. Podemos deixar que passe por nós e nos derreta como aos relógios de Dali, podemos tentar resistir-lhe até sermos engolidos na onda, ou podemos abraçá-lo e dizer baixinho, hoje vou fazer o melhor que sei e, se não conseguir, amanhã posso tentar de novo.

Podemos aceitar que é ladrão e negociar o que leva, sem deixar que nos roube a paz, a esperança e a crença de que conseguimos ser a melhor versão de nós mesmos, um dia atrás do outro, até o comboio parar na estação certa, para lá do medo e do cansaço, para lá de tudo.