O lugar da adversidade

Joel Neto, escritor e cronista da "Notícias Magazine"

Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Ainda hoje morro a rir ao imaginar o Ismael de volta da estante, os livros e os enfeites a cair – e ele com as suas morcelas, à procura do gravador, da cassete, da fita-cola, do papel.

E agora, como usar o passado para ajudar o Artur a decifrar o Mundo? Penso nisso e só me ocorre contar-lhe de como o Ismael quase gravou o Kokomo, dos Beach Boys.

No nosso tempo, não havia Spotify, MP3 ou sequer CD: uma canção fazia-se ouvir algures, por milagre, ou então era preciso comprar o disco. Mas nós adorávamos o filme “Cocktail”. E o Ismael tinha um gravador portátil, daqueles horizontais, que então nos pareciam o limite da inventiva.

Não tinha só o gravador. Também tinha uma persistência peculiar, uma motricidade fina calamitosa e, claro, um desejo ardente de gravar o Kokomo – num dia em que o Kokomo passasse na rádio, ele chegasse a tempo e o locutor não se pusesse a falar por cima.

Certa tarde, estando o Ismael sozinho em casa, soaram djembés – e logo ele se precipitou para o gravador. Digo “precipitou”, mas não foi assim, porque às vezes o gravador estava na cozinha, outras no quarto dos rapazes e outras ainda na estantezinha da sala, onde a minha tia ia arrumá-lo.

Foi aí que começou a desgraça do Ismael. Porque, quando ele encontrou o gravador, já os Beach Boys iam no primeiro refrão, para lá das Florida Keys. Pior: o gravador estava sem cassete, pelo que, quando apareceu uma cassete, já eles cantavam sobre a Martinica e Montserrat. E pior ainda: a cassete era original, sem patilhas de segurança, e o Ismael não encontrava a fita-cola.

Portanto, só lhe restava pegar em papel, dobrá-lo minúsculo e atafulhar as pequenas câmaras, para enganar o percutor. Nada disso era fácil com aquelas morcelinhas a que o Ismael tinha de chamar dedos das mãos. E, quando tudo isso se concluiu, já os Beach Boys tinham passado Port-au-Prince e iam entre a Bermuda e a Bahama, rumo à última paragem em Kokomo.

Ao todo, ficaram uns 35 segundos, os últimos 15 em fade-out. O som era mauzito: o gravador tinha as cabeças sujas e o Ismael não achou um cotonete. Mas o radialista só falou por cima no fim. E, à noite, foi com um ar de triunfo que o Ismael nos trouxe o seu troféu.

Tudo o resto o contou ele próprio, em tom épico. Ainda hoje morro a rir ao imaginar o Ismael de volta da estante, os livros e os enfeites a cair – e ele com as suas morcelas, à procura do gravador, da cassete, da fita-cola, do papel. Hoje escrevo na biblioteca: já chorei a rir, no meio destas pessoas que vêm aqui trabalhar a sério.

A verdade é que nunca percebemos o Ismael, o que só faz dele o rapaz mais incrível da minha infância. Era trapalhão, aluado, um aluno mediano, incapaz de solfejar a escala de dó. De lá para cá, fez o Conservatório e até deu concertos como contrabaixista; tornou-se sacerdote de uma igreja respeitável; tem quatro filhos com nomes esquisitos, mas não se engana neles – e é um pai exemplar.

Melhor inspiração, não imagino. E, se me ocorre a história de como quase gravou o Kokomo, empreendendo contra a inépcia e a escassez, nem é para a ensinar ao Artur. É para me lembrar a mim de que o meu filho vai precisar da adversidade para poder superá-la. Resistir a blindá-lo: eis um desafio para um homem de classe média, com quase 50 anos e uma última oportunidade nas mãos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)