Margarida Rebelo Pinto

O legado de Franca Viola


Rubrica "A vida como ela é" de Margarida Rebelo Pinto.

Não consigo perceber como podem os homens pensar e acreditar que podem ter a posse de um ser humano, tratá-lo como um objeto e considerá-lo sua propriedade.

Os dois anos que passei pelo curso de Direito deixaram-me duas coisas: vagas noções básicas de Direito e de Economia e alguns amigos para a vida. Aprendi a lei da Oferta e da Procura, da Utilidade Marginal e, no que se refere ao Direito, pouco mais do que a diferença entre a posse e a propriedade. Não era talhada para aquilo, a minha imaginação de escritora esbarrava com o raciocínio lógico-dedutivo necessário ao mundo jurídico e a minha pena livre implicava com a linguagem opaca e intricada dos manuais.

Uma das grandes falhas da Humanidade é o facto de as leis terem saído da cabeça dos homens, sem contributo feminino. Numa sociedade esmagadoramente machista, orientada e regida pelo patriarcado, temas como pudor, moral e honra sempre tiveram dois pesos e duas medidas e sempre serviram os homens. Um horrível exemplo disso, entre tantos outros, foi a lei do casamento por reparação, uma salvaguarda para os homens que, se casassem com a mulher que tinham violado, ficavam livres do crime de violação.

Nos anos 1960, a siciliana Franca Viola foi sequestrada e violada pelo ex-namorado, Filippo Melodia, que se recusava a aceitar o fim da relação. Filippo raptou-a e levou-a para uma quinta onde a manteve prisioneira durante uma semana. Segundo a lei italiana, o casamento entre o violador e a vítima dariam o necessário perdão ao carrasco e a “honra” da mulher seria restaurada perante a sociedade. Em ternos humanos, é difícil imaginar maior humilhação e terror do que ser obrigada a dar o nó com o monstro que violentou o que de mais sagrado uma mulher pode ter, o direito ao seu corpo e a preservação da sua dignidade. Contudo, na cabeça de alguns homens, isso não é assunto. Perante a sociedade, a forma de reparar o crime é normalizá-lo, encontrando-lhe um enquadramento jurídico e social que o torne aceitável. Aceitável para quem? Não certamente para a mulher violada. Franca não só se recusou a casar com Filippo, como levou o caso a tribunal. Durante todo o processo, Franca e a sua família sofreram ameaças, o seu celeiro e vinha foram incendiados. Como ousavam os Viola desafiar a lei e os bons costumes vigentes? Os atos criminosos de Filippo ficaram provados e foi condenado a 11 anos de prisão. A coragem de Franca foi o ponto de partida para a mudança de mentalidade e posterior alteração da lei, quase 20 anos depois, em 1981. No Brasil, o hediondo casamento por reparação foi abolido apenas em 2005.

Há poucas semanas, o meu querido Brasil e o Mundo assistiram à violação de uma parturiente por um médico num hospital no Rio de Janeiro. Os números oficiais deste crime abjeto no Brasil são assustadores, o que revela a prática comum do mesmo. Não consigo perceber, talvez por ser mulher, o que leva um homem a usar e abusar do corpo de uma mulher. Não consigo perceber como podem os homens pensar e acreditar que podem ter a posse de um ser humano, tratá-lo como um objeto e considerá-lo sua propriedade. A chamada moral e os apregoados bons costumes assim o ditaram ao longo da história da Humanidade, que se revela tão desumana. Nunca me canso de repetir que o Mundo sempre foi um lugar perigoso para as mulheres. Continuará a sê-lo, enquanto as mulheres não tiverem voz nem poder para o mudar.