Rui Cardoso Martins

O ladrão de gasolina

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

O advogado de turno entrou quase hora e meia depois de o terem pedido com urgência, eram quase 11.30 horas.

– Eu só peço que, se me chegar uma multa a casa, o tribunal arranje uma justificação para o excesso de velocidade, disse o advogado, bem-disposto, chegando a correr de Cascais.

– Pode contar com isso, sotor, era uma urgência!, riu a juíza.

Não era culpa dele: numa semana, o número de advogados oficiosos de turno, pagos pelo Estado para a defesa dos arguidos pobres em tribunal, baixara de uma dezena para apenas dois advogados no Campus de Justiça de Lisboa. Em três salas diferentes ouvi oficiais de diligências, em vão, a encomendarem por telefone o advogado de turno, estavam todos ocupados. O direito à defesa em Lisboa era um bem escasso, como uma bomba de gasolina que fica vazia. Este caso deu-se precisamente a 24 de Fevereiro de 2022, a quinta-feira em que a Rússia bombardeou à traição as cidades da Ucrânia. Mas não se falava da invasão, a vida judicial continuava na sua vida problemática. O ladrão de combustível chegara algemado da penitenciária de Monsanto pelas 10 horas e pediu para lhe libertarem os pulsos doridos. Quando se viu de mãos livres, levou as palmas à cara e chorou. João acabara de discutir com a advogada e ela pediu escusa à juíza em cima da hora, dizendo que não tinha condições para defender o homem. A juíza irritou-se, de repente, não havia advogado, que é obrigatório, e lá fora estavam 13 testemunhas para ouvir. Disseram-me que o homem enchera o depósito do carro em oito bombas de gasolina, um crime de furto repetido ao longo de semanas, fugindo sem pagar. Um profissional do enche e foge.

O pescoço de João, debaixo da polida careca, parecia um catálogo de estabelecimento prisional: tatuagem com cruz celta e, mesmo atrás da nuca, um código de barras incrustado na pele, linhas paralelas e pretas num rectângulo, como se João fosse um boneco grande comprado no híper. Nos pulsos, serpentes e facas retorciam-se em tinta azul-escura.

– Senhor João, a sua advogada pediu a escusa.

– Não ouvi nada, eu não ouço nada deste ouvido, berrou João.

– Mas ouve do outro!, disse a juíza. A sua advogada pediu escusa e temos de chamar o advogado de turno.

– Mas eu não preciso de advogado!, berrou João, de novo.

– Isso é um problema seu… Nós precisamos.

Hora e meia de espera. O advogado chegou de Cascais. Ficou num canto, com João, na sua ruidosa surdez, a contar que viveu 30 anos na Suíça – “pas de problème!” – e que acabara na prisão devido a ter-se “metido no consumo” da droga por uma paixão.

O advogado que viera em excesso de velocidade pediu para reunir com a advogada da Galp. A juíza, ao reentrar na sala cinco minutos depois, soube que havia acordo. O irmão de João iria pagar os 373 euros de gasolina roubados em duas prestações. “O meu irmão paga tudo, não há problema!” Tudo acertado com nibs e datas. A juíza estava feliz. Um julgamento sem fim acabara sem começar:

– Sinceramente, o sotor fez hoje aqui um milagre. O milagre de não ficarmos à espera.

– Sotora, eu não faço milagres.

– Mas hoje aconteceu!

Eu estava ainda insatisfeito. A gasolina é um tesouro cada vez mais valioso e eu queria saber que tipo de ouro líquido se tratava.

– Com o que é que ele enchia o depósito antes de fugir?

– Combustível, disse-me o advogado.

Pus as pálpebras como persianas a meia altura da janela:

– Claro… Mas gasolina, gasóleo?

– Aqui diz furto de combustível. Não lhe chega “combustível”?

– Acho importante saber o que ele roubava.

Papéis reabertos, leituras rápidas pelo advogado:

– Deixe-me ver. Ah, era gasolina.

– Obrigado. De 95 ou de 98 octanas?

-… mas isso tem importância?!

A Galp não especificara o código genético do roubo.

– Se fosse eu, aproveitava e roubava da mais cara, admitiu o advogado, que viera de Cascais gastando combustível.

– Está a ver?, disse eu. Também eu!

Mais de três semanas de guerra na Ucrânia e os depósitos – mesmo os roubados – podem encher como dantes, mas agora custam muito mais. Valem cada vez menos, como a paz.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)