Margarida Rebelo Pinto

O Joselito da Polónia


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Davide tem 40 anos, é solteiro e está habituado a viajar pela Europa. Esta não é a primeira vez que toca piano para aquecer o coração das pessoas.

Davide Martello é um pianista italiano que toca todos os dias para os refugiados em Medyka, junto à fronteira da Polónia com a Ucrânia. Os primeiros dias da guerra deixaram-no paralisado em Nöggenshwiel, na Floresta Negra onde vive. Não demorou muito tempo a fazer-se à estrada com o piano no atrelado e o seu gato Salem, o amigo silencioso e inseparável. Pedi a Davide uma conversa por videochamada, depois de ter descoberto a sua conta no Instagram.

Davide tem 40 anos, é solteiro e está habituado a viajar pela Europa. Esta não é a primeira vez que toca piano para aquecer o coração das pessoas. Diz que não faz ideia até quando irá ficar. Há cerca de três semanas foi até Lviv onde tocou durante alguns dias. Estava a nevar, os seus dedos entoavam melodias dos Beatles quando uma senhora de idade se aproximou com um cobertor para o proteger do frio. Os dois ficaram sob o mesmo manto de ternura, enquanto Davide tocava Yesterday. Quando regressou a Medyka, teve de fazer um desvio pela Hungria por causa das intermináveis filas de carros na estrada dos refugiados que abandonavam toda uma vida.

Do lado de cá da fronteira, mães chegam com crianças rabugentas e exaustas. Um abraço, um brinquedo e um pouco de música podem fazer a diferença. Junto à fronteira estão montadas tendas com voluntários que vieram dos quatro cantos do Mundo. Uma das maiores é de voluntários chineses, que lhe fornece água, café e comida, enquanto está a tocar. Nos dias mais frios, Davide toca de chapéu e de luvas com os dedos cortados, sob temperaturas negativas, sem pensar no frio. “Nos dias de sol é mais fácil, toco durante mais tempo”, diz com um sorriso tímido.

“É tudo tão intenso que nem sequer estou a processar, estou só a funcionar.” Tal como Davide, que toca para aquecer o coração de quem chega, há um Pai Natal que distribui brinquedos. Voluntários usam chapéus divertidos para dar alegria e alento às crianças. Uma equipa de médicos palhaços anima os mais novos e arranca-lhes as gargalhadas possíveis. E também há bolas de sabão, uma maneira simples e fácil de fabricar magia num cenário de fome, de frio, de desorientação e de incerteza. Entretanto, já aprendeu a tocar três canções ucranianas. “Mesmo quando não falam inglês, eu digo YouTube, eles percebem e escolhem uma que apanho de ouvido.” Há refugiados que pedem para tocar, têm saudades do seu piano que deixaram para trás.

Quando António Lobo Antunes esteve na guerra em Angola, conta que foi salvo pelo filme “Joselito, o pequeno cantor”. Em Chiume, um buraco na fronteira com a Zâmbia, a sua companhia encontrava conforto na história do herói de palmo e meio, projetada num lençol. Joselito ajudava-o a viver, a suportar o horror das noites, o sofrimento, a perspetiva da morte, a solidão.

“Fico enquanto houver movimento, abraços e emoção.” Nunca vamos saber em quantas almas o Joselito da Polónia irá fazer a diferença. No fim das contas, os números não importam. Importa até que ponto a arte toca o coração dos outros e lhes traz algum conforto, alguma paz, algum consolo, apesar de tudo.