O Japão anda por aí

Animes, mangas, cosplay, origamis, restaurantes, a própria língua. A cultura japonesa é um universo vasto e particularmente rico que inspira uma legião crescente de fãs portugueses.

Para André Manz, o princípio de tudo foi talvez aquela dificuldade crónica em entender os filhos catraios, as cartas e os poderes, uma certa linguagem própria, as figurinhas de Pokémon que colecionavam avidamente, ele sem perceber que tudo aquilo era parte integrante da cultura pop japonesa. Ou então aquela visita a um bairro nipónico de São Paulo, durante uma viagem ao Brasil, em que reparou que aquela cultura era um fenómeno global. Ficou então a saber que havia “um evento muito grande” em Barcelona, o “Saló del Manga”, pegou na família e foi até lá. “Fiquei completamente rendido.” Por isso, de regresso a Portugal, tentou perceber o que se fazia cá. “E descobri que não havia nada.” Até que soube de um “mini evento que uns jovens de uma escola de Mem Martins” estavam a organizar. E fez questão de lá ir. A visita não foi inocente. Dias depois, convidou os organizadores daquele microevento a reunirem-se com ele e com os filhos, no escritório da Manz (a empresa que abrira ainda nos anos 1990, inicialmente a pensar nos eventos de fitness), para um brainstorming destinado a gizar um evento numa escala maior. Nascia aí a génese do Iberanime, que se autointitula como “o maior espetáculo da cultura pop japonesa” em Portugal. A primeira edição ocorreu em 2010, no Estádio Universitário, em Lisboa, e teve 500 visitantes. Desde então, foi sempre a crescer. Da sala Tejo do MEO Arena para a parte central do pavilhão e depois para a totalidade do mesmo, até este se tornar demasiado pequeno e terem de se mudar para a FIL.

É lá que, neste fim de semana, e depois de dois anos de interregno provocados pela pandemia de covid-19, voltam a abrir portas, com uma oferta de atividades tão vasta que fica difícil resumir. “Temos tudo aquilo em que pensa quando se fala do Japão”, esclarece o mentor do evento. “Desde a parte mais cultural, como a língua, as várias cerimónias que acontecem no país e os kimonos aos origamis e aos bonsais, passando pela comida, as artes marciais e, claro, os videojogos, com uma parte dedicada ao retrogaming, onde se podem redescobrir jogos com a minha idade”, conta André Manz, de 57 anos. E não podiam faltar os livros de manga (banda desenhada japonesa), os concursos de cosplay (em que os participantes se fantasiam de personagens fictícias, no caso ligadas à cultura pop japonesa), as músicas das bandas sonoras dos mais famosos animes (desenhos animados) japoneses, ou mesmo concertos de J-rock (o rock japonês). Este ano, só em Lisboa – o evento decorre também no Porto, em outubro -, são esperadas 25 mil pessoas.

Números que, no entender do empresário, ilustram uma tendência clara: nos últimos dez anos tem havido, em Portugal, um “interesse crescente” pela cultura japonesa. “Está em todo o lado, nós é que muitas vezes não percebemos”, defende, dando o exemplo das artes marciais como o karaté ou o judo ou de séries como o Dragon Ball, “que paravam miúdos e adultos”. Aliás, não tem dúvidas de que os anime japoneses, pela sua “qualidade imensa”, têm sido um dos principais dínamos deste fascínio que parece ir de vento em popa. Os anime e os os videojogos. “Quem não tem ou teve uma PlayStation ou uma Nintendo?”, questiona.

Quimbé é fã incondicional da cultura pop japonesa e diretor de dobragens de vários animes de culto em Portugal
(Foto: Rita Chantre/Global Imagens)

Quimbé, ator, dobrador de um sem-fim de filmes e séries e até diretor de dobragens “de uma data de anime de culto em Portugal”, além de embaixador do Iberanime, é um bom exemplo de que como o deslumbramento pelos anime japoneses pode instalar-se para a vida. “Quando era puto, vi o Jackie e Jill, que era uma história em que havia um pai índio, um caçador, uma mãe ursa e dois ursinhos pequenos, que acabam por ficar órfãos. E eu lembro-me perfeitamente de que quando a mãe ursa foi assassinada eu chorei, chorei, chorei.” O bichinho dos anime haveria de lhe ficar sempre, agora também partilhado com os três filhos. Mesmo que ele continue sem o saber explicar. “Não sei dizer exatamente porquê, mas adoro. Identifico-me com a cultura oriental, adoro a cultura pop japonesa, acompanha-me desde que nasci. No caso dos anime, adoro a mensagem, o facto de terem coisas completamente fora, até de terror. Não sei, é giríssimo”, atira, visivelmente entusiasmado, ele que está atualmente a dobrar o mais recente filme dos Digimon – Digimon Adventure: A Última Evolução Kizuna estreia a 9 de junho).

Fábulas com uma mensagem forte

Raquel Cupertino, responsável do site PT Anime, uma das principais páginas dedicadas a anime, manga e cultura asiática em Portugal, procura aprofundar mais a fórmula de sucesso destes desenhados animados de origem nipónica (que na realidade se aplica também às mangas, até porque “grande parte” dos animes são adaptados a partir de histórias de manga já existentes, ressalva). “Os japoneses usam muito a arte como forma de educar e de dar lições. Foi por isso que o Naruto acabou por abraçar tantos jovens, por ser uma espécie de mentor. Porque eles pegam nas histórias mais extraordinárias com o intuito de fazer pensar. Essa é para mim a grande diferença entre a animação do Ocidente e do Oriente. É que, enquanto no primeiro caso a ideia é sobretudo entreter, no Oriente há também a preocupação de tirar uma lição. Como fábulas que pretendem deixar-nos com uma mensagem, seja de superação, dedicação, amizade ou amor.” Além, claro, da qualidade dos argumentos, “próximos do genial”. E de serem episódios curtos, de 20 minutos, de “rápida absorção e fortes emoções”. Depois, são as pequenas coisas, que vão conquistando devagarinho, até se tornarem vício. “É muito a especificidade. A escrita japonesa é completamente diferente da ocidental. A forma como contam a história, a espetacularidade, até certos maneirismos deles, os exageros na comédia, tudo isso acaba por cativar. Depois, por exemplo, os japoneses não são tão ligados ao toque quanto nós, só dar a mão para eles já é uma coisa incrível e essa singularidade também atrai. Dão tanto valor aos pequenos momentos e nós, ocidentais, acabamos por nos apaixonar também por aquela delicadeza e aquela valorização dos sentimentos.”

Para ela, a paixão começou a desenhar-se por volta dos 15 anos (atualmente tem 31), no tempo em que ainda havia na televisão portuguesa o canal Animax, dedicado aos anime. Viu alguns, gostou, quis saber mais sobre o assunto. Percebeu então que havia “um nicho de amantes em Portugal”, que inclusive já começavam a existir encontros de fãs. Depois, veio o Iberanime. E aquela paixão a fazer-se maior e maior, ainda mais depois de ter descoberto também o universo das mangas japonesas. Ao ponto de, a dada altura, começar a fazer críticas. Começou por escrever para um blogue brasileiro (há muito que, no Brasil, os blogues dedicados ao tema se tinham feito tendência), depois acabaria por ser convidada para escrever para o PT Anime, nascido em 2011. A trajetória de crescimento do site serve-lhe de argumento para desfazer a ideia de que a cultura pop japonesa continua a ser uma cultura de nicho. “Em 2018/19, éramos o blogue número um em sites de entretenimento. O nicho era tal que conseguíamos estar em primeiro lugar. Isto mostra que não é tão nicho assim e que o anime está realmente a crescer, em particular de há uns anos para cá.” Raquel encontra várias explicações para o fenómeno. Além da qualidade destas produções, já escrutinada acima, a médica dentista, produtora de conteúdos em part-time, admite que “plataformas como a Netflix vieram ajudar”. Até pela crescente perceção de que o anime “não é só para crianças”. “Aliás, têm conteúdos altamente segmentados. Para se ter uma ideia, há animes especificamente virados para mulheres acima dos 18 anos.”

A primeira edição do Iberanime realizou-se no Estádio Universitário (Lisboa), em 2010, e desde então tem sido sempre a crescer. Neste fim de semana são esperadas na FIL perto de 25 mil pessoas
(Foto. DR)

A tendência é também sentida por Ana Lopes, editora das edições Devir, que desde 2012 começaram a publicar obras de manga. “Na altura, o nosso editor-chefe percebeu que era algo que estava a crescer, nomeadamente em França e em Espanha, e que cá só havia coisas muito marginais – a ASA chegou a publicar uns livros do Dragon Ball, mas não concluiu a coleção – e achou que seria uma boa aposta.” De então para cá, ao longo destes dez anos, a editora tem já 15 coleções publicadas (entre as que já estão concluídas e as que ainda estão a sair). Mas o crescimento mais acentuado, refere, fez sentir-se a partir do ano passado. “Começou na altura da pandemia, até porque, fechados em casa, os jovens só tinham acesso aos meios digitais, e para os pais o facto de os filhos lerem foi um alívio. Depois acho que foi exponenciado por uma série de lançamentos que acabaram por ter impacto a nível mundial. A coleção Demon Slayer, por exemplo. O marketing foi tão bom que acabou por haver um interesse grande pela coleção e, por consequência, pelo género.” Isto à medida que se foi estilhaçando uma “perceção errada” acerca dos livros de manga. “Muitos adultos da faixa millenial, que viram Dragon Ball quando eram mais novos, tinham a ideia errada de que o manga era algo violento e portanto eram reticentes a comprar estes livros, não achavam que os filhos deviam ler. Agora muitos já perceberam que não é assim.”

No Iberanime, há ainda um espaço inteiramente dedicada ao “retrogaming” que funciona como uma espécie de cápsula no tempo, rumo a jogos (e videojogos) de outras décadas
(Foto. DR)

Este interesse florescente estende-se ao cosplay, esse universo do fantástico em que os fãs vestem literalmente a pele dos heróis da animação. Quem o garante é Leonor Grácias, 32 anos, presidente da ANAC – Associação de Cosplay, defendendo que também esta variante da cultura pop japonesa tem “cada vez mais adeptos”. Para ela, o interesse nasceu ainda miudinha, devia ter uns 14 anos, quando, através do Fotolog, foi conhecendo o diminuto número de pessoas que na altura estava familiarizado com o conceito. Entretanto, soube de um evento de cosplay em Lisboa, e decidiu ir, caracterizada de Sakura, da série “Tsubasa Chronicles”, com um fato “muito simples” que a avó lhe fez, especialmente para aquele evento. Daí em diante, não mais parou de participar. Em 2008, fez o primeiro fato sozinha. Hoje, estima que já tenha entrado nuns 50 concursos. Mesmo que cada fato lhe leve “um, dois meses” a preparar. “Nas calmas, claro.” Até já representou por duas vezes Portugal no World Cosplay Summit. E, lá está, não tem dúvidas de que o fenómeno tem crescido a olhos vistos. “Notei isso em vários momentos. Primeiro quando veio o Iberanime, depois com o Lisboa Games Week, porque o cosplay também está muito associado ao universo do gaming, agora, com a pandemia, foi o boom no TikTok. Há uma comunidade inteira nova de cosplayers no TikTok.” Em causa está, segundo Leonor, um fenómeno “intemporal”, que dá resposta à necessidade de “fuga à pressão do Mundo real”. “É um hobby muito completo e inclusivo, que ajuda a espairecer e a dar asas e à criatividade.”

Um preconceito que vai caindo

À boleia deste crescimento transversal, vai-se também rompendo um certo estigma negativo associado à cultura pop japonesa. “Ainda não desapareceu totalmente, mas diria que até ao final dos anos 1990, isto de gostar deste tipo de cultura não era muito bem aceite e aos poucos isso tem vindo a mudar”, entende Tiago Molinos, 27 anos, uma das vozes do podcast Super SenPais (Super por causa de uma personagem anime, SenPais uma palavra tipicamente japonesa sem tradução literal, mas que significará algo próximo de mentor), que nasceu a 1 de janeiro do ano passado e conta com uma média de 500 visualizações por episódio. A intenção é clara: debater e refletir sobre o tema. “Sobre anime e manga, principalmente. Quisemos criar um cantinho com o qual a malta se pudesse identificar a interagir.” Uma aposta que é em si mesma reflexo da exponenciação do fenómeno. João Martins, outro dos autores do podcast, explica isso mesmo. “Também teve muito a ver com o facto de vermos cada vez mais conteúdo a surgir, cada vez mais pessoas a entrar no meio, a ir eventos.” Tiago, que começou a ter “mais consciência do que era anime” com 13, 14 anos, e que criou desde então uma verdadeira “ligação sentimental” com algumas destas séries (além de ser colecionador de mangas), olha para a Netflix como a “grande responsável” por uma certa massificação. “Quando começou a ficar mais acessível começou a falar-se mais no assunto, houve mais gente a ver, os eventos começaram a apostar, as editoras perceberam que podiam fazer dinheiro com isso, fizeram-se mais animes para impulsionar a venda de livros. É uma bola de neve.”

O evento é também uma montra para artistas de manga que aproveitam este “palco” para expor o seu trabalho
(Foto. DR)

Mas afinal, como é que se justifica este deslumbramento que a cultura pop japonesa parece provocar? Daniel Cardoso, sociólogue (Daniel é uma pessoa de género não-binário que pediu explicitamente para que fosse usada linguagem neutra) que durante anos esteve “envolvido com a comunidade anime em Portugal de forma muito ativa”, fala numa “mistura de fatores”. “Por um lado, o facto de Portugal e o Japão terem partilhado muitas centenas de anos de influência cultural. Na altura da expansão marítima portuguesa, até se verificou o fenómeno inverso, de Portugal ter impactado muitos elementos da cultura japonesa. Por outro, um conceito invocado por um filósofo palestiniano [Edward Said], que é o conceito de orientalismo e que no fundo consiste numa prática cultural do Ocidente de olhar para tudo o que vem do Oriente como algo exótico. Até certo ponto, este fascínio pela cultura japonesa, uma espécie de fetichização, tem traços deste orientalismo.” O docente da Universidade Lusófona e da Universidade Nova de Lisboa sublinha ainda “os processos de valorização de outras referências culturais”. E dá um exemplo concreto, alicerçado no tal contacto próximo que durante anos manteve com a comunidade anime em Portugal. “Alguns começaram a aprender japonês para conseguirem compreender melhor as nuances do material original. Ou a estudar a história e a cultura do Japão. Não será a maior parte das pessoas que o faz, mas diria que é um número grande.”

Com efeito, há indicadores dispersos que parecem sugerir que o interesse pela cultura nipónica não se cinge à cultura pop. No Instituto de Línguas da Universidade Nova de Lisboa, por exemplo, o japonês está atualmente entre as cinco línguas mais procuradas, com 173 alunos. Na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o número de inscritos é substancialmente mais baixo, mas nos últimos quatro anos tem-se verificado um crescendo (particularmente do último ano para este, em que se passou de 25 para 39 alunos). Também Josiane Canitrot, cidadã francesa de 61 anos que há quatro abriu, na LX Factory, a Origami Factory, um estúdio integralmente dedicado a esta ancestral arte japonesa, tem notado que há “mais e mais portugueses interessados em origami”. “Não só têm vindo a descobrir os seus benefícios e as infinitas possibilidades de dobragem como, parece-me, se sentem cada vez mais identificados com a delicadeza da cultura japonesa, em que tudo precisa de ser feito com precisão e tempo.”

Diana Marques e José Silva deixaram-se seduzir pela gastronomia japonesa durante o estágio que fizeram no curso de Hotelaria e, antes de se lançarem num negócio próprio, fizeram questão de passar um mês no Japão, a comer tudo o que pudessem
(Foto. DR)

Segundo dados apurados na última semana pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), relativos ao total do comércio de bens da fileira cultural e criativa nos últimos cinco anos, o Japão surge mesmo no top 20 dos fornecedores. A “Notícias Magazine” procurou ainda, junto da AHRESP, apurar o número de restaurantes japoneses abertos em Portugal nos últimos anos, mas verificou que esse estudo nunca foi feito. A proliferação deste tipo de estabelecimento parece, no entanto, uma realidade indesmentível. Diana Marques e José Silva, ela de Aveiro, ele do Porto, ambos com 24 anos, contribuem, desde agosto do ano passado, para engrossar a estatística, mas a ideia sempre passou por terem um espaço que fosse bem mais do que “outro restaurante japonês”. Estudaram ambos Hotelaria, seguiram a via da gastronomia nipónica logo no estágio, apaixonaram-se por ela desde então. Pelo método, pela preparação, pelo respeito pela comida. “Embora o meu interesse também seja muito a parte histórica, social e cultural do país”, pormenoriza Diana.

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Decidiram então juntar dinheiro e lançar-se um mês à aventura no Japão, com um objetivo inusitado. “Comer tudo o que conseguíssemos comer no mínimo tempo possível. Conclusão: engordei dez quilos, o Zé ficou igual”, partilha Diana, com graça à mistura. Pelo meio, até houve um pedido de casamento. Quando voltaram, foi pôr mãos à obra. Primeiro, apostaram numa espécie de carrinha ambulante, onde preparavam e vendiam a comida, um conceito tipicamente japonês. Depois, no ano passado, ousaram abrir o Akai, no Furadouro, Ovar. “A ideia é que além da gastronomia as pessoas também possam experienciar um bocadinho do que foi a nossa aventura no Japão. No espaço, temos bilhetes das viagens que fizemos, fotos que tirámos lá, uma louça típica que usamos especificamente para a mesa do chef, peças de cerâmica, livros. Basicamente tudo o que conseguimos trazer na mala. A ideia é mostrar às pessoas o que foi para nós descobrir o Japão.” E ajudar a que o fascínio pelo país possa continuar a crescer.

(Foto. DR)