O inferno do assédio no trabalho

Foram postos na prateleira, isolados, maltratados, humilhados, até agredidos. Anos a fio, dia após dia, um tormento incessante. Viveram deprimidos, assustados, ansiosos. Houve até quem tenha pensado no suicídio. O assédio laboral pode ser um poço sem fundo.

Quando recorda o que lhe aconteceu, há uma comparação que logo lhe tolhe o pensamento, é mais forte do que ela, não consegue evitar. “Já ouvi vários relatos de mulheres vítimas de maus-tratos que dizem que não sabem como é que se deixaram chegar àquele ponto, de serem agredidas. Foi isso que me aconteceu. Ainda hoje não sei como deixei aquela pessoa ter um domínio assim sobre mim.” Percebe agora que, por ter a mãe com uma doença terminal, estava num momento particularmente frágil. Mas tudo o resto continua enredado num novelo sombrio e indecifrável. Sara, nome fictício, trabalhava há mais de dez anos numa instituição bancária, sempre livre de problemas, quando foi para um novo balcão e a vida se enviesou. “A subgerente já era conhecida no banco por ser uma pessoa problemática, que oscilava muito na sua forma de estar.” E ela acabou vítima preferencial daquela aparente bipolaridade.

“Lembro-me que na primeira vez me levantou a voz de forma tão repentina e despropositada que eu nem percebi logo que era para mim. Mas era. Nesse mesmo dia, tivemos o almoço da Páscoa e já estava agarrada a mim, como se nada fosse.” Aquele aparente momento de brandura encerrava pouco de reconciliador. Os inusitados ataques verbais sucediam-se em loop. Dezenas deles. “Depois, no dia seguinte, às vezes no próprio dia, era como se não tivesse acontecido nada. Ao ponto de achar que o problema era eu, que estava a fazer uma análise errada.” Certa vez, foram todos jantar e, com uma boa dose de álcool à mistura, a subgerente disse-lhe algo que não pôde mais esquecer: “Eu sei que te trato como uma vaca”. Mais uma vez, não percebe como não respondeu. E o inferno foi-se adensando. Ora a destratava, ora estava tudo bem, ora lhe recordava que estava abaixo dela, ora era como se nada fosse.

Até ao dia em que, depois de mais uma violenta discussão, Sara desabou. Foi para a casa de banho chorar, o gerente, preocupado, foi atrás dela, a subgerente subiu mais um degrau na escala da insanidade e entrou por ali dentro raivosa, atirou o gerente para cima da sanita, empurrou Sara contra a parede, deu-lhe um estalo. “Não sei o que me custou mais: se a sensação do meu corpo a ser encostado contra a parede fria, se a mão dela na garganta, se o estalo. Sei que não consegui dizer nem fazer nada. Foram dar comigo no meio da rua à chuva, à procura do meu carro.” Quando falou com o diretor para lhe dizer que ou a mudavam de balcão ou saía do banco, ele ainda insistiu para continuar a trabalhar, porque “acima de tudo somos profissionais”. E, quando foi lá buscar as coisas para se ir embora, a subgerente ainda lhe atirou uma última frase doentia. “E não chores porque a tua mãe não morreu.” A dela (da subgerente) tinha morrido recentemente de covid, a de Sara, por suprema ironia e malvadez, acabaria por falecer nesse mesmo dia.

Terminado o período de luto, propuseram-lhe então que mudasse para outro balcão, mais longe de casa. Não se ficou. Indignada e magoada com a postura que os seus superiores tiveram ao longo de todo o processo – “chegaram a questionar a intensidade do estalo”, acusa -, decidiu avançar para tribunal. Mas a dada altura propuseram-lhe um acordo: Sara desistia da queixa-crime contra a subgerente, em troca o banco deixava-a sair com uma indemnização simpática. E ela preferiu aceitar. “Acima de tudo precisava de recuperar a minha saúde. Já tinha perdido cinco quilos e estava de rastos.”

Só que os efeitos perversos daqueles meses de tortura tardaram a desvanecer-se. Desenvolveu mesmo uma perturbação de stress pós-traumático, diagnosticada pela psicóloga que a acompanhou ao longo do processo. “Tinha medo de sair de casa, fazia tudo para não passar perto do meu antigo local de trabalho, se via um carro igual ao dela nem olhava.” Os efeitos nefastos daquele trauma resvalaram até para o filho, de dez anos. “Voltou a fazer xixi na cama, a querer dormir comigo, a ter medo de me deixar sozinha em casa. Um dia, atrasei-me dez minutos a ir buscá-lo ao ATL e a professora disse-me que ele estava num pranto, a achar que eu tinha morrido.” Teve de recorrer a ajuda psicológica também para ele. A boa notícia é que entretanto se recompôs, arranjou novo trabalho, vai para um ano, o ambiente é totalmente diferente, sorri muito enquanto o diz, parece genuinamente feliz. Só uma inquietação não parece dar tréguas. “Não sei como deixei que aquilo acontecesse.”

Humilhação, perseguição, isolamento

Sara não está sozinha. Longe disso. Segundo um estudo realizado em 2016 pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, 16,5% da população ativa portuguesa já vivenciou uma situação de assédio moral no trabalho. Por definição: ataques verbais, de conteúdo ofensivo e humilhante, que podem abranger episódios de violência psicológica ou mesmo física. Na prática, o assédio pode passar pela intimidação, a humilhação pessoal, a perseguição profissional, o esvaziamento de funções, o isolamento social. Raquel Pereira, 38 anos, queixa-se de tudo isso. E aponta o dedo ao próprio irmão. Começou a trabalhar na empresa de transportes que era do pai tinha 18 anos, chegou a ser sócia-gerente, deixou a gerência em 2011, por opção própria, garante, ficando como sócia. Os problemas terão começado em 2020, após a morte do pai, “por desentendimentos da parte societária” com o irmão, responsável máximo da empresa. “Nessa altura, recusei-me a dar mais avales pessoais e ele disse-me que estava na altura de eu sair. Mas eu não quis. E a partir daí, a minha vida enquanto funcionária tornou-se impossível. Tudo aquilo que nos livros está conotado com assédio eu passei a experienciar no meu dia a dia”, defende.

Desde logo, assegura Raquel, o isolamento. “Fui colocada sozinha numa sala, num piso onde só o meu irmão trabalha. Mas ele fá-lo por opção. Eu sempre gostei de estar a trabalhar no meio das pessoas.” E aquela relocalização terá sido apenas o princípio. Queixa-se de que as procurações que tinha para tratar dos assuntos financeiros da empresa foram canceladas, que lhe foi retirado o acesso à rede informática da empresa, à Internet. Jura até que os colegas a passaram a ignorar por completo, que deixaram de lhe dar informações básicas e lhe passar telefonemas, que todos os dias se sentia ridicularizada e humilhada. “Dei a minha vida por aquela empresa e agora estou há dois anos nesta situação”, lamenta Raquel, inconformada. Pelo meio, intentou duas ações de tutela da personalidade (“mas os acordos nunca foram cumpridos”, acusa), foram-lhe levantados três processos disciplinares, chegou a ser suspensa. “Agora vamos intentar uma ação por assédio laboral, mas já pondero ter de sair da empresa porque a minha continuidade lá foi tornada impossível.”

“Fui colocada sozinha numa sala, num piso onde só o meu irmão trabalha. Mas ele fá-lo por opção. Eu sempre gostei de estar a trabalhar no meio das pessoas”, afirma Raquel Pereira
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Contactado pela “Notícias Magazine”, Hugo Pereira, irmão de Raquel e sócio-gerente da empresa em causa, conta uma versão distinta. Lembrando que desde finais de março a trabalhadora em causa se encontra de baixa médica por gravidez de risco, garante que “até então ocupava o maior e melhor gabinete da empresa com outro trabalhadora que também está de baixa por doença natural”. Diz mesmo que este “foi escolhida pela própria quando exercia advocacia nas instalações da empresa”. E defende que os processos disciplinares submetidos contra a mesma “indiciavam factos comprometedores da confiança que a empresa depositava” nela, razão pela qual as procurações terão sido revogadas. De resto, o responsável assegura que a empresa teve uma avaria na Internet, “tendo a password sido alterada e redefinindo-se os acessos à rede informática e aos e-mails de acordo com a função de cada um”. Acusa ainda a irmã de nunca ter conseguido “estabelecer uma boa relação e um bom ambiente de trabalho com os colegas”, referindo mesmo que “cerca de seis trabalhadores da empresa optaram por se despedir da empresa por essa razão. E remata afirmando que “da parte da empresa todos os acordos foram e estão a ser cumpridos”.

Assédio vertical e horizontal

Noémia Carvalho, psicóloga clínica e forense que se tem especializado na área do assédio laboral (e já escreveu um livro sobre o assunto), admite que estes casos terminam quase invariavelmente com a saída do local de trabalho onde os episódios ocorrem. “Inclusivamente, tenho muitos pacientes que me chegam depois de já se terem despedido. Porque as pessoas passam a ser elementos não gratos, a relação com os colegas fica minada, há uma incapacidade de continuar a trabalhar ali.”

Cristina (só Cristina, pede), delegada de informação médica, viveu na pele as dores de uma relação difícil com os pares. Mesmo que tudo tenha começado com problemas graves com o chefe. “Era uma pessoa com aquela postura antiga de chefe, controladora, agressiva, mal-educada, que reinava pela discórdia e gostava de pôr as pessoas a duvidar umas das outras.” Com ela, o verniz estalou depois de uma formação em que lhes foi pedido que apontassem pontos positivos e negativos da empresa. Cristina falou da questão da autonomia, disse até que a lacuna era em grande parte responsabilidade do chefe. “Aquilo chegou-lhe aos ouvidos, não sei de que forma, e ele telefona-me, a confrontar-me e indiretamente a ameaçar-me. Como percebeu que eu não aceitava que ele abusasse do poder que tinha, tomou-me de ponta e a partir daí tudo foi pretexto para me apontar o dedo.”

As discussões sucediam-se, as ameaças também, chegou a dizer-lhe que nunca foi chefe de mandar gente embora, mas que se tivesse de o fazer também o faria. “Passados seis meses de episódios destes, tivemos mais uma discussão e ele teve a infeliz ideia de me pôr a mão em cima. Durante a discussão, o tom e o nível de educação começaram a mudar e eu disse-lhe que ficássemos por ali, porque nem o meu pai alguma vez me tinha falado assim.” Mas não ficaram. “A dada altura, avança sobre mim, agarra-me e diz: ‘Ó minha menina!’.” Cristina afiança que teve de lhe pedir quatro vezes que a largasse até ele efetivamente recuar. Naquele momento, soube exatamente o que tinha a fazer. “Liguei à chefe dele e pedi para nos encontrarmos, para fazer queixa. Ela agradeceu-me o facto de eu ter tido a coragem de fazer o que nunca ninguém tinha feito, porque já toda a gente tinha tido problemas com ele, mas a partir daí começaram os meus dois anos de tormento. Entrou em contacto com a equipa toda do norte para contar a versão dele e, como toda a gente tinha medo, conseguiu que quase todos deixassem de me falar. Não me perguntaram nada, não me cumprimentavam, não me dirigiam a palavra, soube até que me chamavam de tudo e mais alguma coisa.”

Ela resistiu, ainda assim. Porque sempre adorou a área e porque, mesmo no meio daquele inferno, continuou a apresentar ótimos resultados. Quanto ao chefe, à custa da queixa que fez, nunca mais teve de conviver com ele ou sequer de lhe atender o telefone. Mais tarde, já durante a pandemia, o superior acabaria mesmo por deixar a empresa. “Supostamente por extinção do posto de trabalho”, diz Cristina. Mais inesperado foi o facto de, um ano depois, também ela ser convidada a sair. “Ele foi embora, mas aquilo já tinha passado para toda a equipa e a atitude manteve-se. Agora, à distância, percebo que era política da empresa. Ao fim e ao cabo fui usada e sujeita a sofrer aquele bullying porque queriam juntar material para mandar aquela pessoa embora. E acabei a tornar-me altamente indesejada.”

“Agora, à distância, percebo que era política da empresa. Ao fim e ao cabo, fui usada e sujeita a sofrer aquele bullying porque queriam juntar material para mandar aquela pessoa embora. E acabei a tornar-me altamente indesejada”, explica Cristina
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Nuno Cerejeira Namora, advogado que trabalha com casos de assédio laboral há mais de 30 anos, acredita que, se numa parte deles, este tipo de bullying é algo gratuito – “porque sim, porque não se gosta, porque usa piercing, porque é daquela religião, porque tem uma dada orientação sexual” -, noutros funciona como “instrumento de gestão, com vista a aumentar a produtividade e melhorar os resultados”. “De alguma forma o empregador acha que praticar o assédio dentro da empresa faz com que todos, sabendo da existência destas situações, fiquem mais dóceis e produzam mais.” O jurista distingue ainda entre assédio vertical e horizontal. “O mais normal é o assédio vertical descendente. Isto é, das chefias para os trabalhadores. Mas também pode ser ascendente. Depois, há o horizontal, que é praticado pelos colegas. O pior de todos é quando se combinam ambos, mesmo que com objetivos distintos. Este é que é diabólico.”

Uma questão de género

E afinal, serão as mulheres mais vulneráveis a este tipo de situações? Maria Isabel Dias, professora de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com trabalho feito na área do assédio em contexto de trabalho, admite que sim. Até porque, sublinha, “o género é uma lente importante”, nomeadamente ao nível das modalidades que o próprio assédio moral assume. “No caso das mulheres, associa-se muitas vezes à desqualificação relacionada com a estereotipia de género. “‘Tens a mania que és vítima’, ‘vocês, mulheres, são muito emotivas’, ‘isso são as hormonas a falar’, ‘estás naquela fase do mês’, ‘devias ir para casa cuidar dos teus filhos’. São tudo exemplos de coisas que com alguma frequência são ditas às mulheres e servem este propósito.”

Nalguns casos, o assédio moral associa-se mesmo ao assédio sexual. A história de Rute (nome fictício), médica de profissão, encaixa nesta sobreposição traumatizante. Há quase 20 anos, acabadinha de sair da faculdade, entrou como interna geral num centro hospitalar do norte e foi vítima de um “comportamento inadequado” – prefere chamar-lhe assim – por parte de um colega. “Achei por bem fazer queixa ao diretor do serviço, mas fiquei logo marcada. Ainda sugeriram mudar-me de serviço, mas eu bati o pé. Disse que se o fizessem ia fazer queixa à Ordem dos Médicos.” E então decidiram mantê-la. Mas aquele desdém ficou sempre ali a pairar, haveria até de se exponenciar com o passar dos anos. Ainda mais quando, uns tempos depois, voltou a fazer uma denúncia. Desta vez por causa dos médicos que recebiam remunerações indevidas. “Assinavam em vários sítios e em vez de um dia de trabalho ganhavam dois ou três. Houve gente que teve de devolver milhares de euros. Claro, se já estava marcada, a partir dali nem me podiam ver.”

A prova disso, entende, chegou anos mais tarde, quando estava a terminar a especialidade e começou a sentir atitudes mais hostis. “Tiraram-me trabalho, o meu nome deixou de aparecer nas escalas das urgências, acabaram por me dizer que não havia funções para mim e meteram-me numa biblioteca, o dia todo, sem fazer nada, quatro ou cinco anos. Com a falta de médicos que há, acha isto normal?”, questiona, indignada. E ela ainda assim foi-se deixando ficar. Porque tinha uma ligação afetiva àquele hospital, porque passou anos com problemas de saúde graves, porque tinha medo de denunciar e comprometer o resultado no exame de acesso à especialidade. Mas não deixou de apresentar queixas através da plataforma Notifica, da DGS. Até porque o bullying não se ficou por ali. A dada altura, chegaram a acusá-la de simular uma doença. E tentaram empurrá-la para outro hospital. Ela voltou a não aceitar. E o tormento seguiu, ela mergulhada num abismo tal que ainda hoje não sabe como se manteve à tona.

“Foram anos de maus-tratos, sem entrar nas escalas, sem ser chamada para reuniões, sem me deixarem inscrever em formações obrigatórias, a dada altura sem ter sequer um lugar onde me sentar. Fui-me aguentando a antidepressivos”, confessa Rute
(Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

“Foram anos de maus-tratos, sem entrar nas escalas, sem ser chamada para reuniões, sem me deixarem inscrever em formações obrigatórias, a dada altura sem ter sequer um lugar onde me sentar. Fui-me aguentando a antidepressivos. Mesmo sabendo que ali nunca teria uma verdadeira oportunidade. Mas sempre tive aquela coisa de querer tentar fazer justiça. Posso não conseguir provar tudo, mas eles vão pensar duas vezes antes de fazer isto a outra pessoa.” E assim, em 2021, depois de anos a fio de sofrimento e adiamentos, resolveu avançar para tribunal (o processo ainda está a decorrer). Entretanto, começou uma nova aventura noutro hospital, onde dá por ela a estranhar algo tão simples como o facto de as pessoas serem agradáveis. “Nunca soube o que era ser bem tratada, agora até fico desconfiada. E a verdade é que desde que saí dali a única baixa que tive foi por causa da covid. O que eu tinha era uma depressão reativa, por causa daquele ambiente.”

Ideias suicidas

A depressão é uma consequência comum neste tipo de casos. A psicóloga Noémia Carvalho atesta isso mesmo. “Os doentes chegam à consulta muito fragilizados, ansiosos, deprimidos, com problemas de autoestima, dificuldades no sono, perturbações a nível alimentar, uma insatisfação terrível ao nível do trabalho. É algo contínuo e galopante.” No limite, podem chegar ao suicídio. “Não são as situações mais frequentes, porque regra geral as pessoas procuram ajuda, mas há de facto casos desses.”

Miguel (também nome fictício) não chegou a esse ponto, mas assente que, na fase mais crítica, deu por ele a pensar nisso. Vamos ao princípio. Miguel é assistente social, jura que decidiu ir por aí para fazer o bem, advoga que foi sempre isso que quis ao longo dos anos em que esteve numa IPSS dedicada a apoiar jovens problemáticos. A certa altura, já era ele coordenador técnico, há um episódio de uma cuidadora que, agredida por um menino, “não conseguiu dominar as emoções e agrediu-o também”. Ele reportou o episódio a quem de direito, convicto de que ela não teria condições para continuar, mas foi-lhe transmitido que se manteria em funções. “Se fosse noutra fase da minha vida mais madura, se calhar dizia que não aceitava, nem que me mandassem embora a mim. Mas na altura não o fiz, também tinha filhas pequenas.” Miguel vai divagando, ainda a braços com as trevas daquele trauma.

A história ficou por ali, mas só temporariamente. Anos mais tarde, numa conversa com um técnico da Segurança Social, o jovem em causa volta a falar no sucedido. E o técnico pediu mais esclarecimentos. Tanto a Miguel como à direção da IPSS. “Acabei por ter conhecimento pelo técnico de que a direção tinha respondido que não tinha conhecimento do sucedido e que ia abrir um inquérito. Quando os contactei, ainda me perguntaram como tinha sido possível deixar que aquilo acontecesse, que devia ter falado com o rapaz para que ele não partilhasse o que tinha acontecido. Fizeram de mim o bode expiatório da situação. E ali começou a minha perseguição.” Visitas-surpresa para controlar, escrutínio máximo, tons arrogantes e desrespeitosos. Até ao dia em que amigavelmente o convidaram para tomar café, para lhe comunicarem que deixaria de ser coordenador técnico. “Está a ver os perus, quando se lhes dá vinho do Porto para a seguir lhes cortar o pescoço? Foi isso que eu senti.”

A partir daí, só piorou. Esvaziaram-no de funções, deixou de poder estar presente nas reuniões da equipa técnica, passou a ser um mero cuidador. Chegaram a pôr-lhe em causa a integridade física, entende. “Quando era preciso fazer contenções físicas no caso de miúdos mais problemáticos, mandavam-me ir sozinho.” Miguel bateu no fundo. “Comecei a deprimir, fiquei muito mal, ainda por cima a equipa começou a alinhar também. Cheguei a pensar em suicídio.” Os problemas, como quase sempre nestes casos, alastraram-se à família mais próxima. E Miguel meteu baixa.

“Comecei a deprimir, fiquei muito mal, ainda por cima a equipa começou a alinhar também. Cheguei a pensar em suicídio” , reconhece Miguel
(Foto: Miguel Pereira/Global Imagens)

Ainda fez por se reforçar a nível emocional, começou com terapia, a ter acompanhamento psiquiátrico, tentou voltar. Mas a cada dia que passava as dificuldades eram maiores. Ora tinha que fazer mais noites, ora o impeliam a ir embora, ora convidavam os elementos da própria equipa a dizer que seria melhor ele bater com a porta. E bateu mesmo. Não sem avançar com um processo contra a IPSS. “Mas acabei por fazer um acordo. Estava muito fragilizado e cansado. Senti que a minha vida não andava para a frente e decidi assim”, atira, como quem ainda duvida que tenha sido a melhor decisão. E apesar do orgulho que sente por ter tentado lutar, por ele e pela verdade, reconhece que a ferida está longe de curada. “Fui magoado, humilhado, maltratado, tudo. E isso é algo que não se apaga. Permanece em nós.”

Nuno Cerejeira Namora alerta ainda para o facto de, hoje em dia, os métodos utilizados serem “cada vez mais refinados e silenciosos”. “Já não é tanto o esvaziar de funções, é o retirar de pequenas regalias profissionais. Um diretor que é proibido de estacionar o carro junto dos diretores, alguém que deixa de ser aceite naquela mesa ao almoço, que é ignorado nas reuniões e se sente invisível. São coisas que isoladamente qualquer um de nós aguenta, mas que, com o passar do tempo, leva o trabalhador a questionar-se sobre o que vai acontecer amanhã.” O jurista aponta ainda o dedo ao Código Penal, onde não consta a figura do assédio laboral (consta apenas do Código do Trabalho). “O assédio moral em Portugal não constitui crime. É importante criar uma lei que penalize este comportamento. A figura mais próxima que temos no nosso ordenamento penal é um artigo relativo à perseguição, que não é minimamente adequado a estes casos. É preciso criar um novo artigo, até como forma de diminuir a tentação de recorrer ao assédio moral.”

Já Noémia Carvalho recorda que, no caso das empresas com sete ou mais trabalhadores, a existência de um código de conduta que promova a prevenção e combate ao assédio no trabalho é obrigatória, mas que demasiadas vezes não se cumpre. E frisa que é fundamental denunciar. Maria Isabel Dias, socióloga, deixa ainda uma última nota, a merecer reflexão. “Há uma cultura que protege os ofensores e desculpabiliza as vítimas. Aquela conversa do ‘se calhar não é bem assim’, ‘oh, mas ela é tão simpática, não estás a exagerar?’, ‘e se não é assim?’. São narrativas que encontramos frequentemente. Procuram-se fatores e variáveis que ajudam a construir a ideia de que o ofensor tem razão. Pensa-se sempre: ‘E se não for verdade?’ Mas muitas vezes não se tem esse tipo de pensamento em relação às vítimas, pessoas que vivem atormentadas pelo medo, que já tiveram uma trajetória de sofrimento tão intensa e que muitas vezes só denunciam em situações-limite.”


*À edição online do artigo foi acrescentada a versão de Hugo Pereira, sócio-gerente visado por Raquel Pereira, visto que as respostas às questões colocadas pela “Notícias Magazine” não chegaram a tempo de ser incluídas na edição impressa.