Valter Hugo Mãe

O festival de Coura


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Claro que todos gostamos de nossos tempos de bom hotel, mas um festival de verão só tem sentido com uma elementar precariedade que nos atire uns para cima dos outros, a aprender como se aceitam diferenças e manias, como são ritualizadas as pessoas e o quanto podem estabelecer um compromisso em prol de uma alegria comum.

Este ano há festival e fervilham as pessoas à procura de alojamento e a cismar com o calor dos dias e o frio das noites. A vila freme, há um sismo brando na espera da multidão. Subitamente, tudo aqui será um tumulto alegre, os jovens do Mundo farão a babel cordial do costume, chegando na massiva manifestação de paz que sempre é o grande evento de Coura. A Praia do Taboão, sabemos todos, é o cenário perfeito para estas férias. O festival é um aliado da Natureza, a florestação é a banda mais exuberante, convidada permanente, conhece os músicos, é o adereço luxuoso que distingue um qualquer lugar do paraíso que aqui se fez.

Desta vez, vou amontoar-me na casa da minha comadre. A confusão é parte fundamental deste convívio, uma mistura básica que nos obriga a sair das peneiras habituais e a partilhar muito mais. Claro que todos gostamos de nossos tempos de bom hotel, mas um festival de verão só tem sentido com uma elementar precariedade que nos atire uns para cima dos outros, a aprender como se aceitam diferenças e manias, como são ritualizadas as pessoas e o quanto podem estabelecer um compromisso em prol de uma alegria comum. Nossos tiques burgueses são suspensos. Voltamos todos a ter a boa vontade de meninos, focados no barulhinho bom das bandas, justificados por ver os Mão Morta, os Linda Martini e a Márcia, os Pixies ou aquela moça de saia pequena que nunca lembro como se chama.

Por estes dias, a Isabel Lhano inaugurou a tela gigante que pintou no Salão Nobre de Coura, representando figuras ilustres da terra e aludindo ao seu património material e imaterial. A vila passa o mês de Agosto em festa e a arte de Isabel Lhano ficará para sempre como manifesto da festa urgente de 2022, quando toda a gente anseia por normalidade após o acontecimento de uma pandemia. Este é o ano em que, até à revelia de tanto receio e indefinição que perduram, as pessoas reclamam o exercício desculpado do encontro.

Vem aí o festival de Coura e centenas de milhares de abraços. Onde a amorosidade se naturalizou não será possível conter o gesto absoluto dos amigos. Coura está pronta. A maravilha já vai na cara das pessoas. Redobraram-se os mantimentos nos cafés e nos restaurantes locais. O rock traz certo carnaval, uma divertida permissividade para com atitudes menos padronizadas e menos postiças. O rock desmonta tudo. Gosto muito como isso acontece. Que comecem os Mão Morta e mais um grande tempo das nossas vidas. Só quero ir dormir no fim. Quando já todos os fraquinhos tiverem parado de dançar. Eu vou querer estar lá quando o dia tiver a ideia de nascer. Eu quero estar lá. Como de costume.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)