O casamento gay religioso que a Igreja nunca anulou

(Foto: DR)

A história do primeiro e único casamento religioso entre duas pessoas do mesmo sexo e nunca anulado pela Igreja tem novos dados. Encontrámos em Buenos Aires a bisneta de Marcela, a mulher que há mais de um século desafiou, juntamente com Elisa, a escala de valores vigente para (tentar) alcançar a felicidade. É a primeira vez que Norma conta o que esteve em segredo durante décadas.

Norma recosta-se na cadeira da sua casa, em plena Buenos Aires. Fecha os olhos e sorve, sempre com gosto acrescido, música portuguesa (fado, sobretudo) e brasileira. É nesses momentos, repetidos sempre que o bulício da vida o permite, que junta as peças da tão profunda quanto agitada história de amor e coragem que a colocou ali, na cosmopolita capital da Argentina. E sorri.

Norma Graciela Moure, 65 anos, é bisneta de Marcela Gracia Ibeas, uma das duas mulheres que, no dia 6 de junho de 1901, desafiando todas as normas e costumes do conservador início do século XX, casaram no Registo Civil da Corunha. Dois dias depois, às sete horas da manhã, Marcela e Maria Elisa Carmen Sánchez Loriga, entravam na Igreja de San Xurxo, também na Corunha, já noivos. Finda a cerimónia, lesta e pouco concorrida, noivos e padrinhos cumprimentaram-se. O primeiro casamento entre duas mulheres estava oficializado. Que se saiba, foi o único matrimónio religioso, nunca anulado pela Igreja, entre duas pessoas do mesmo sexo acontecido na História.

Para que tal acontecesse, Maria Elisa assumira uma nova identidade. A golpes de coragem e determinação, transformara-se em Don Mario. Em 1901, trocou Dumbria, município da Corunha onde dava aulas, pela cidade da Corunha. Passou a usar fatos masculinos e cabelo curto. Argumentando que havia sido educado em Londres por um padrasto protestante, conseguiu convencer um padre a conceder-lhe o batismo católico condizente com a religião professada em Espanha, a que voltara. A 26 de maio do mesmo ano, foi batizado. “Nascera” Mario José Sánchez Loriga, homem agora na plena posse dos seus direitos e com a documentação em ordem para consumar o casamento com Marcela, a sua amada.

A foto da bisavó que Norma guarda em sua casa. Norma nunca chegou a conhecer Enriqueta, cuja vida foi carregada de dificuldades
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O antes e o depois desta ousadia sem paralelo está documentado no livro “Elisa e Marcela, Alén dos homes” (Elisa e Marcela, Além dos Homens). Publicado em 2008, o trabalho resultou de uma aturada investigação levada a cabo por Narciso de Gabriel, professor na Faculdade de Ciências da Educação da Universidade da Corunha. Numa visita aos arquivos históricos de Santiago de Compostela, em 1993, o catedrático deparou-se com um estranho processo disciplinar levantado, em 1901, a duas professoras primárias (Marcela e Maria Elisa). Apenso estava um texto publicado no jornal “La Voz de Galicia”, com o sugestivo título “Un matrimonio sin home” (Um matrimónio sem homem), o primeiro fio do novelo que o professor desenrolaria nos 15 anos seguintes.

A pungente história deu mesmo lugar ao filme “Elisa e Marcela”, disponível na Netflix, e ao romance “Amantes de Buenos Aires”, de Alberto S. Santos (ver texto nestas páginas). Mais recentemente, o historiador Mário Bruno Pastor, da Universidade Católica Portuguesa, escreveu na edição n.º 18 da revista “JN História” (disponível em jnhistoria.jn.pt/edicao-18/ ) um texto em que junta novos dados e considerações ao resumo do que até então se sabia.

O que não se conhecia, até hoje, era o paradeiro exato dos descendentes de Marcela. Sabia-se que a filha de Marcela, Maria Enriqueta de seu nome, fruto de um relacionamento esporádico – e porventura forçado – com um homem de uma das mais ricas famílias de Dumbria, onde Marcela lecionava em 1899, nascera no Porto, no Hotel Gibraltar, a 6 de janeiro de 1902. A certidão de nascimento de Enriqueta foi encontrada muito recentemente, graças ao esforço do Arquivo Distrital do Porto. Documento inédito, é publicado pela primeira vez nesta edição da NM.

A certidão de nascimento de Enriqueta, filha de Marcela. Durante décadas, a sua existência foi desconhecida. Por cortesia do Arquivo Distrital do Porto, é a primeira vez que se publica
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Acossado pelos populares e perseguido de modo inclemente pelas autoridades espanholas, o casal decidira refugiar-se na Invicta, antes de cumprir o plano inicial: seguir para Buenos Aires, onde a ampla comunidade galega ali existente lhe daria guarida: primeiro passo para, imaginavam Marcela e Don Mario, construírem um futuro tranquilo na Argentina.

Luz a partir do acaso

O passado fechou-se para as seguintes gerações da família de Norma. Na verdade, foi o acaso que a colocou no trilho da história da sua bisavó. Dado que nada sabia sobre os antepassados da mãe, Florencia, uma das suas três filhas, decidiu requerer nacionalidade italiana, por ali ter nascido o pai. Norma sabe de cor o dia em que achou ser tempo de procurar informação sobre os seus antecedentes – 3 de junho de 2018. Uma rápida busca na Internet usando o nome da avó devolveu-lhe o que diz ter sido “uma profunda surpresa”: o livro de Narciso de Gabriel, com os pormenores do que havia acontecido há mais de um século.

“Não queria acreditar no que lia”, conta Norma à NM a partir de Buenos Aires. “Comparei a foto que tinha da minha bisavó com a que estava na capa do livro, e pareceu-me a mesma pessoa. No mesmo dia, via correio eletrónico, entrei em contacto com o escritor, sem esperança de receber resposta. A verdade é que, no dia seguinte, tinha resposta no meu mail. Aí começou o caminho da reconstrução possível da vida da minha bisavó.” Um ano depois, seria publicada na Netflix a película “Elisa e Marcela”, de Isabel Coixet, que ajudou a sustentar certezas, mas também a erguer novas dúvidas.

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“A minha mãe transmitiu-me poucos dados. Disse-me que a minha bisavó tinha nascido em Castilla la Vieja [Burgos, Espanha] e que tinha chegado à Argentina escapando de Espanha com nome falso, porque estava a ser perseguida pelas autoridades espanholas. Não consigo dizer se houve uma espécie de pacto para que tudo ficasse em segredo, ou se, simplesmente, a minha mãe não tinha mesmo mais informação”, assinala Norma.

Certo é que, partindo do porto de Cádiz, Enriqueta, então com nove meses, e a mãe chegaram a Buenos Aires a bordo do navio Infanta Cristina. Norma, ansiosa por conhecer os pormenores possíveis da história, pediu, entretanto, ajuda a Raúl Comba, jornalista de Banderaló, província da capital argentina. Juntos, encontraram a certidão de casamento dos avós com a assinatura de Marcela, reproduzida nestas páginas.

A certidão de casamento de Enriqueta. O marido tinha 21 anos, ela apenas 15, conforme se pode ler no registo
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Mais: chegaram à fala com um ancião de Banderaló e com Mariella, uma sobrinha bisneta de Elisa (Don Mario). A avó de Mariella conheceu Elisa, que lhe terá contado que, quando soube da gravidez de Marcela, encarou o alegado pai com uma pistola em punho (os relatos históricos aludem à circunstância de Don Mario se fazer acompanhar regularmente de um revólver – o Despertador, assim lhe chamava), tendo de seguida urdido o plano para fugir com Marcela, evitando dessa forma o escândalo que seria o nascimento de uma criança sem pai conhecido num povoado remoto como Dumbria. As mesmas fontes disseram a Norma que Elisa terá falecido, vítima de cancro, em 1940, em Santos Lugares, cidade situada na área metropolitana de Buenos Aires.

Vida (muito) dura

Enriqueta, conta a neta, viveu muito pouco tempo na capital argentina. Aos dois anos de idade, mudou-se para Banderaló. Casou aos 15. Foi mãe de dez filhos. Vítima dos maus tratos do marido, desapareceu em 1940, com 38 anos completos. Segundo a mãe de Norma, terá fugido para Espanha com um outro homem. “Tenho muita pena de não ter conhecido a minha avó e de, por isso, não guardar dela qualquer recordação. A minha mãe também não podia ajudar muito, uma vez que passou pouco tempo com ela.”

A rudeza da vida é, de resto, comum à família de Norma, que recorda: “A minha bisavó passou os primeiros dez anos da sua vida num hospício em Burgos, sem direito ao amor dos pais; a minha avó, casada quando era uma criança, foi maltratada pelo marido; a minha mãe foi criada por uma família basca e teve uma vida muito dura. Apesar de não ter tido uma infância e uma adolescência feliz, creio que consegui dar a volta à história”.

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A mais de um século de distância, Norma, já reformada, evita julgamentos. “Creio que a minha bisavó e Don Mario nunca quiseram ser pioneiros em nada. Não sei se eram, ou não, lésbicas. Tenho, cada vez mais, a certeza de que fizeram tudo o que foi possível para sobreviver, sobretudo a minha bisavó, por estar grávida. Se foi isto que aconteceu, estou grata a Don Mario.”

Um sonho

Poderosos como são, os acontecimentos deixaram marcas em Norma, a partir do momento em que tomou conhecimento da luta travada pela sua familiar. É também por isso que, com a ajuda do embaixador português na Argentina e do escritor Alberto S. Santos, está a tentar obter a nacionalidade portuguesa. Já o pode fazer, agora que o Arquivo Distrital do Porto encontrou a certidão de nascimento da avó Enriqueta. “Porque quero ter cidadania portuguesa? Porque a minha avó nasceu no Porto e creio que seria uma bonita maneira de a recordar. Para além disso, gostava que duas das minhas filhas também acedessem à nacionalidade portuguesa. Uma já fala e escreve português. A outra entende a língua.”

Seguiram os passos da mãe. Por alguma razão que não consegue explicar, Norma trocou a possibilidade de aprender francês pelo estudo do português. “O idioma encanta-me. Quando tomei contacto com a vossa língua, foi um caminho sem volta. Na verdade, falo mais português do Brasil do que português de Portugal. Pouco interessa: estou encantada.”

Norma Graciela Moure
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Rememorada (quase) sempre que o som da música portuguesa ou brasileira ecoa pela casa, a história de Marcela e Elisa suscita um desejo a Norma: “Adoraria percorrer os lugares da Galiza e de Portugal onde esteve a minha bisavó. Conheço alguns através de fotos, mas poder estar nos sítios onde estiveram presas e naqueles em que foram ajudadas pelos portuenses, que lhes abriram os braços, seria um momento único e comovedor”. Seguramente tão comovedor quanto a história de amor de Marcela e Elisa.

Da ficção à realidade

No romance “Amantes de Buenos Aires” (na foto, o autor, Alberto S. Santos, com Norma e uma das suas filhas, na feira do livro de Buenos Aires ), sustentado nas vivências de Elisa e Marcela, Alberto S. Santos descreve a existência de uma jovem descendente de Marcela a viver na capital Argentina. “Imaginei uma jovem senhora um pouco mais nova do que Norma que se propõe descobrir os segredos da história familiar”. Estava longe de imaginar que a ficção tinha correspondência com a realidade. Até nos pormenores: a personagem do livro circula num Fiat 600, marca e modelo do veículo que Norma teve durante anos. “Quando saiu o filme da Netflix, reparei, nas pesquisas que entretanto fiz, que uma mulher de Buenos Aires tinha visto a película e reparado que algumas imagens eram parecidas com fotos que tinha em casa”. Tratou, então, de descobrir o paradeiro de Norma. Encontrou-a, tendo aproveitado a ida à feira do livro de Buenos Aires, em maio deste ano, para a conhecer pessoalmente. “A literatura, por vezes, cola-se com a realidade. Essa parte, para mim, é comovente”, diz o escritor.

O apoio dos portuenses

O escândalo que o caso gerou em Espanha e a dura perseguição encetada pelas autoridades obrigou o casal a refugiar-se no Porto, antes de seguir para a Argentina. Assustado, embarcou separadamente. Don Mario foi o primeiro a chegar. Discretamente, viveram numa pensão na Praça da Batalha. Mas os recursos foram escasseando, apesar de Don Mario se ter empregado numa alfaiataria da Rua do Bonjardim e Marcela no Café Lisbonense. Foi o dono desse estabelecimento que decidiu avançar com uma petição pública para angariar fundos para o casal. O “Jornal de Notícias” e “O Primeiro de Janeiro” associaram-se à iniciativa – e, em poucos dias, os donativos chegados de todo o país alcançaram os 77 mil réis, maquia considerável para a época. Reconhecido, o casal deslocou-se à sede do JN para agradecer a ajuda.

Os problemas, contudo, permaneceram. As autoridades espanholas não abandonaram o caso, que continuava a fazer correr muita tinta na imprensa castelhana. A insistência redundou na identificação de Don Mario e na detenção do casal. Detidos no Aljube, primeiro, e na Cadeia da Relação, depois, Marcela e Don Mario cumpriram oito dias de prisão. O julgamento realizou-se na primavera de 1902. Saíram em liberdade. Os portuenses sempre as apoiaram. O JN, por exemplo, deu conta dos aplausos e vivas dirigidos ao casal, quando este saiu da Cadeia da Relação. Norma não esquece a cena que leu: “Chorei quando soube disso. Ao contrário dos espanhóis, que lhe fizeram muito mal, Portugal sempre apoiou a minha bisavó”.

Da ficção à realidade

No romance “Amantes de Buenos Aires”, sustentado nas vivências de Elisa e Marcela, Alberto S. Santos descreve a existência de uma jovem descendente de Marcela a viver na capital Argentina. “Imaginei uma jovem senhora um pouco mais nova do que Norma que se propõe descobrir os segredos da história familiar”. Estava longe de imaginar que a ficção tinha correspondência com a realidade. Até nos pormenores: a personagem do livro circula num Fiat 600, marca e modelo do veículo que Norma teve durante anos. “Quando saiu o filme da Netflix, reparei, nas pesquisas que entretanto fiz, que uma mulher de Buenos Aires tinha visto a película e reparado que algumas imagens eram parecidas com fotos que tinha em casa”. Tratou, então, de descobrir o paradeiro de Norma. Encontrou-a, tendo aproveitado a ida à feira do livro de Buenos Aires, em maio deste ano, para a conhecer pessoalmente. “A literatura, por vezes, cola-se com a realidade. Essa parte, para mim, é comovente”, diz o escritor.

O autor, Alberto S. Santos, com Norma e uma das suas filhas, na feira do livro de Buenos Aires
(Foto: DR)