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Dr. Mercy, o “Big Brother” da dermatologia

Fotos: Discovery

A médica nigeriana especializou-se no tratamento do cancro de pele através da cirurgia micrográfica de Mohs

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Mercy Odueyungbo abriu as portas da própria clínica, em Chicago, aos holofotes de um programa em que trata as doenças de pele mais raras e bizarras do Globo. Os desafios de uma imigrante nos Estados Unidos e a chegada ao pequeno ecrã, com “Dr. Mercy”, no TLC.

Tinha dez anos, início da década de 1990, mal sabia falar inglês, quando arrumou a vida numa mala para partir da Nigéria para os Estados Unidos com a família, à boleia do pai enfermeiro, que acabara de conseguir uma bolsa de trabalho. Se nessa altura lhe dissessem que haveria de ser médica e ter o próprio programa no pequeno ecrã, Mercy Odueyungbo não só não tinha acreditado como teria rido. Ainda o faz. “Oh meu deus, estrela de televisão? Não. É muito estranho.” Final de 2021, a televisão sintonizada no TLC, Chicago em letras garrafais e o consultório “Dr. Mercy” abre as portas. A dermatologista corre à sala de espera para dar as boas-vindas aos doentes. É ali, na própria clínica, que trata, rodeada de câmaras, os mais raros e bizarros problemas de pele já vistos.

Está em terras do Tio Sam quando recebe o telefonema da “Notícias Maganize”. É enérgica, fala pelos cotovelos. É diretora médica da clínica Lilly Dermatology, que ela própria fundou em 2018. E desvenda uma história que mais não é do que um acaso com que nunca sonhou. “Adoro os meus pacientes, sempre me contentei com isso. Nunca quis fazer um programa de televisão. Isto começou porque o TLC estava a tentar criar um programa semelhante ao “Dr. Pimple Popper”, mas com quatro ou cinco dermatologistas. Descobriram-me no Instagram e ligaram para o meu consultório. Depois, quase sem me aperceber, o programa acabou por ser só eu.” Foi a televisão que a encontrou, que lhe descobriu o talento para lá da Medicina. E a médica não virou a cara, afinal, “era uma ótima oportunidade de mostrar mais da dermatologia ao Mundo”.

Sem grandes artifícios, em imagens impactantes, no consultório entram casos como um rinofima, que fez crescer um nariz três vezes em relação ao tamanho normal, ou um caso de xantoma disseminado, num homem coberto de caroços enormes pelo corpo todo, até nos olhos, ao ponto de quase não conseguir ver. As dores, a falta de autoestima, a dificuldade em criar relações sociais, em conseguir emprego, em sair de casa invadem vidas e episódios que Mercy Odueyungbo tem a audácia de conseguir tornar mais leves. Até porque o programa é um espelho realista do dia a dia da médica. “Muita gente, ao ver, fica a achar que sou boa a fazer televisão, porque estou a fazer a mesma coisa que faço todos os dias, a falar com os pacientes exatamente da mesma forma. Só tive que passar a ignorar as câmaras.”

O maior desafio? É serem doenças tão raras. “O facto de não haver muita gente no Mundo com estes problemas de pele, de não estarem bem estudados, de não existirem bons planos de tratamento. Quanto mais raros são, menos terapêuticas e opções tenho.” Mas a dermatologista não baixa os braços, nem tira o tapete a quem lhe vai bater à porta. “Quando as pessoas chegam aqui, têm a esperança de que eu as ajude. E estou disposta a tentar de tudo, mesmo que não existam terapêuticas adequadas para aquele problema. E os pacientes querem, no mínimo, tentar.”

Entre os casos mais bizarros que lhe passaram pelas mãos, salta-lhe à memória um de hidradenite supurativa. “Não é normal ver um caso tão severo, com camadas e camadas de pus e infeção na pele.” O doente teve de “remover uma grande parte da pele e fazer um enxerto”. Outro de neurofibromatose, de uma jovem carregada de nódulos e tumores externos pelo corpo, “alguns verdadeiramente enormes”.

O programa mostra cenas reais de cirurgia e isso “pode ser um fator de choque”. Mercy Odueyungbo sabe-o. “Algumas das coisas que removemos são enormes. A maioria das pessoas nem sabia que podem ser retiradas com os doentes acordados.” Vê o lado bom. Ainda fala com os pacientes que tratou nos primeiros episódios – o programa começou a ser transmitido em Portugal em novembro – e eles enviam-lhe fotos. Uma delas perdeu 11 quilos desde que retirou um lipoma. Outros voltaram a namorar. Muitos conseguiram emprego. “E isso é muito gratificante. Claro que as imagens podem ser bastante chocantes. Só que ao mesmo tempo é incrível perceber que muita gente, ao assistir ao programa, vai ficar a saber que há uma alternativa, que há ajuda.”

O pai como inspiração

Rebobina-se a cassete do tempo até à miúda de dez anos acabada de aterrar em Chicago, nos Estados Unidos. Que deixou os amigos e tudo o que conhecia para trás, “tal como muitos emigrantes, em busca de uma vida melhor”. “E pensava eu que sabia falar inglês. Percebi que não quando aqui cheguei. Foi um grande choque ir para a escola, os professores mandarem-me ler e toda a gente começar a rir-se por causa do meu sotaque ou porque não percebiam nada do que estava a dizer. Os primeiros anos cá foram muito, muito difíceis.” Um balde de água fria, teve que se adaptar rápido, a vida ensina.

O pai, enfermeiro anestesista, foi o motor que a empurrou para Medicina, mesmo sem querer. Desde pequena que o segue para todo o lado. “Ele trabalhava em bloco operatório e levava-me para as salas de cirurgia com ele. Foi ele que me ensinou a suturar.” Mercy Odueyungbo sempre soube que a saúde haveria de ser o caminho, “nem sequer sabia que havia outras profissões”. É a primeira médica da família, foi a primeira a ir para a universidade. “No tempo do meu pai, não se ia para a universidade como agora. Ele teve uma espécie de aulas de equivalência para se tornar enfermeiro na Nigéria.” Nunca teve plano B. Começou por estudar Microbiologa, na Universidade de Iowa. Com uma lógica. “Sempre senti que a maioria das doenças vêm de bactérias e vírus. Achei que se dominasse bem essa área, a Medicina seria mais fácil.” Seguiu-se a Faculdade de Medicina da Universidade de Indiana.

O programa mostra cenas reais de cirurgia

A dermatologia esbarrou-se no caminho, uma paixão que nunca mais largou, num mundo que ultrapassa o campo da saúde e que afeta a autoestima. “Acho que uma das principais razões que me levou a seguir dermatologia é porque consigo ver o que estou a tratar. Gosto de resultados imediatos. Consigo ver quando a pele está a responder ao tratamento ou quando removo um tumor. E a dermatologia tem o poder de ajudar os doentes a sentirem-se melhor consigo próprios.”

Cancros de pele ocupam quase 100%

A médica nigeriana, que já leva mais anos do sonho americano do que de vida no país da África Ocidental, especializou-se no tratamento do cancro de pele através da cirurgia micrográfica de Mohs. Entre a remoção do cancro e a reconstrução, é essa a praia em que se sente bem. “É um trabalho que fica a meio caminho entre a dermatologia e a cirurgia estética. Por exemplo, se um paciente chega a mim com um carcinoma basocelular, eu tiro-o. E o objetivo da cirurgia é fazer parecer que nunca nada aconteceu. Depois, também acabo por ser patologista, tenho de ter a certeza de que não há mais cancro ali. E é mesmo bonito poder ser eu a contar ao paciente que removi todo o cancro ainda antes de ele deixar a clínica nesse mesmo dia.” Não há muitas áreas da Medicina, diz, em que os doentes entrem para cirurgia e saiam no mesmo dia a saber que estão curados.

Para lá das luzes da ribalta, trabalha cinco dias por semana, provavelmente quatro são dedicados a remoções de cancros de pele. E há muitos. “As pessoas adoram o sol e não gostam de usar protetor solar. Por isso, estou constantemente a trabalhar em cancros de pele.” A maioria consegue tratar na clínica, só casos mais avançados é que envia para quimio e radioterapia. O diagnóstico precoce é a chave, “se as pessoas deixarem andar e levarem muito tempo a ir ao médico, o cancro vai espalhar-se por todo o corpo e pode ser fatal”.

E se a estética entra nas cirurgias de remoções de cancro, é certo que também tem lugar num dia a dia carregado. “Faço algum trabalho de estética como botox, lipoaspiração. Sinto que me permite fazer uma pausa que me sabe bem. Mas cerca de 80% do meu trabalho é aquele que me veem fazer no “Dr. Mercy” e cirurgias de cancro de pele.”

“As pessoas interessam-se muito por doenças”

De volta ao programa, afinal o que é que as pessoas podem aprender? “Que, no final do dia, somos todos iguais. Somos todos humanos. E todos nós temos o desejo primário de nos sentirmos parte de alguma coisa, de nos sentirmos aceites. Todos queremos ter relações sociais, ter emprego, viver uma vida normal.” É a empatia, acredita, que está a falhar num Mundo acelerado. “Temos que ser melhores uns para os outros. Não importa a cor da pele ou os nódulos que temos a cobri-la. E espero que o programa seja capaz de mostrar isso às pessoas.”

Tornar a dermatologia mais acessível é o que a move na caixinha mágica. Muitos doentes não sabem por onde começar, onde ir quando têm problemas tão raros como os que surgem no “Dr. Mercy”. E quando lhe chegam ao consultório já tentaram muitos outros médicos. “As pessoas têm de saber que a dermatologia não se trata só de botox e preenchimentos. Quero que percebam aquilo que fazemos e que podemos ajudar. Não me refiro só a mim, não sou especial. Qualquer dermatologista certificado pela Ordem consegue fazer exatamente aquilo que faço na televisão.”

Nos últimos anos, o número de programas que giram em torno de médicos a tratar doentes ou a responder a dúvidas do público disparou. Basta olhar para os Estados Unidos: de “The Dr. Oz Show” ao “Dr. Phil” ou “Dr. Pimple Popper”. Sem falar da quantidade de séries icónicas, que acumulam milhões de fãs, como “Anatomia de Grey” ou “Dr. House”. “As pessoas interessam-se muito por doenças e têm uma atração por coisas nojentas, gostam de ver coisas a serem espremidas, a saírem do corpo.” Do sórdido e do desagradável, há um lado positivo. “Há doentes que chegam ao meu consultório e me dizem que já se autodiagnosticaram porque viram o mesmo problema num programa de televisão. Quero acreditar que hoje as pessoas são mais esclarecidas e conscientes.”