O ansiado regresso do Coro Infantil da Casa da Música

Dois anos de paragem forçada levam os nervos ao limite no retorno do Coro Infantil da Casa da Música à grande Sala Suggia. São 40 vozes, de rapazes e raparigas entre os 9 e os 14 anos, que tiveram nas escolas básicas a oportunidade de se conectarem à arte. Para muitos, estar neste palco não figurava, sequer, nos sonhos. Para outros, já não é uma estreia. O burburinho, as emoções e a preparação do espetáculo "Vozes em crescendo".

Nem a descer as escadas António larga o tablet. Rita tem duas amigas à sua volta que preparam a trança que idealizou. David, sempre atento a tudo, avisa os colegas que não devem comer demasiado antes do espetáculo. Joana está calma, sentada numa das cadeiras em frente ao espelho, enquanto observa a correria das colegas. Os comportamentos são diferentes, mas o entusiasmo do regresso está presente em todos e todas, não fosse este um grande momento. Falta uma hora para o espetáculo “Vozes em crescendo”, do Coro Infantil da Casa da Música, no Porto, de volta à sala Suggia depois de dois anos de paragem forçada devido à pandemia de covid-19.

No total, o espetáculo contou com a presença de 38 dos 40 jovens que compõem o Coro. Para alguns, esta foi a primeira apresentação

Para uns, a sensação é de nostalgia. Já pisaram este mesmo palco uma, duas ou três vezes. Mas há também quem seja estreante. É o caso de Carolina Semide. O sorriso e a aparente calma não denunciam o nervosismo. Foi na Escola Básica dos Quatro Caminhos que ficou a conhecer o projeto do Coro Infantil da Casa da Música. Mesmo em plena pandemia, decidiu juntar-se. Hoje, com 11 anos, e nas férias de verão que antecipam a entrada no 6.º ano de escolaridade, confidencia que é a atividade de que mais gosta. Agora, “mais crescida”, está a aprender saxofone, mas este é o primeiro “grande espetáculo”, como lhe chama, em que participa. E é também uma estreia na Sala Suggia. “Pensei que era muito mais pequena.”

O Coro Infantil da Casa da Música surgiu em 2017 e, além de ter presença na sala portuense, é um projeto com trabalho direto nas escolas. A ideia foi desenvolvida por Jorge Prendas, coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música, e tem por base o trabalho em três locais: Escola Básica Quatro Caminhos, em Matosinhos; Escola Básica da Lomba, no Porto; e Escola Básica Quinta das Chãs, em Vila Nova de Gaia. São três coros infantis trabalhados como atividade extracurricular com mais de três centenas de alunos do Ensino Básico. Desses três, há uma seleção das vozes que se destacam e nasce assim o coro infantil principal, acompanhado pela maestrina Raquel Couto, pela técnica vocal Joana Leite e pelo formador musical Jonas Pinho.

A pianista Dalila Teixeira (à esquerda) e a maestrina Raquel Couto (à direita) acompanham o Coro Infantil durante todo o ano

Quem sabe a história do grupo de cor, por nele estar presente há seis anos, é Rita Andrade. Hoje frequenta o Conservatório de Música do Porto, em canto, mas quando, aos sete anos, entrou no coro infantil, não imaginava que iria fazer o seu percurso na música. Nos bastidores da Sala Suggia, e nos ensaios que ocorrem todos os sábados, sente que está numa segunda família. “É divertido vir todas as semanas. É um dia diferente.” Admite que a paragem de dois anos foi “complicada” – havia dias em que o entusiasmo não era tanto -, mas nada que este momento de regresso não faça esquecer, já que, para Rita, “ao voltar, foi ainda melhor do que era antes”.

Treinar, treinar e voltar a treinar

Mas regressemos aos bastidores, recuando dois dias. É sexta-feira e, logo pelas 10 horas da manhã, está marcado o ensaio geral antes do grande dia de domingo. “É a última oportunidade para treinarem tudo nos lugares corretos”, ouve-se repetidamente Raquel Couto dizer. Ainda antes de se colocarem todos nos lugares, é preciso aquecer a voz. Esticam-se os braços, soltam-se os músculos, vocalizam-se os mais variados sons e respira-se fundo. Agora sim, está tudo a postos.

A frase que anuncia o início do espetáculo sai a medo, entre engasgos e hesitação. Aproxima-se Jonas, para ajudar. Entre as 40 vozes do coro e os dois formadores presentes, Raquel e Jonas, não há cerimónias, nem títulos especiais. Todos são tratados por “tu”. Descontração e proximidade são palavras de ordem. “O fim de uma viagem é o início de outra, por isso chegar ao fim é chegar ao início.” As frases já saem sem sobressaltos. É hora de começar a viagem.

O formador Jonas Pinho é outro dos profissionais que acompanham o Coro Infantil durante todo o ano

O espetáculo começa com a estreia de duas composições criadas pelo Coro Infantil, junto com os formadores. “O comboio” traz teatralidade, movimento e coordenação – ainda há que voltar a ensaiar aqueles passos que não estão alinhados. Já “Bach 999”, criado totalmente online durante os períodos de confinamento, exige mais da voz. Mas é também o momento mais esperado por todos, já que contou com a participação de todos e todas, que deram o seu contributo para a peça. O resultado final foi já apresentado na página de YouTube da Casa da Música, acompanhado de excertos de vídeos captados pelos próprios coralistas, mas a estreia presencial é especial. “E deixa um frio na barriga”, confessa Carolina. Seguir-se-á um conjunto de peças já apresentadas noutros espetáculos, que serão cantadas pelos elementos mais antigos. São 22 os jovens que se mantiveram desde a época pré-pandemia e que têm no currículo pelo menos um espetáculo do coro. Os estreantes, 16 crianças que se foram juntando durante o período de paragem, voltarão a palco perto do final do espetáculo.

Carolina (ao centro) foi uma das estreantes do espetáculo principal

A dois dias do “grande regresso”, os nervos fazem-se sentir pela agitação, pelo burburinho e pela descoordenação. É preciso chamar à atenção dos coralistas várias vezes, mas o ensaio lá vai decorrendo. Hoje é também a primeira e única oportunidade de ensaiar com o Ensamble de Cordas da Escola Profissional de Música de Espinho, que acompanhará as vozes. “De zero a 20, passamos de um 7 para um 14.” Jonas Pinho vai avaliando a prestação dos pequenos cantores, motivando-os a fazer melhor a cada repetição. Mas já lá vão três horas de ensaio e, por isso, é o momento de regressar a casa. Antes do grande dia há ainda mais um treino curto. Depois, é relembrar cada música, nota e passo em casa, individualmente.

Criar oportunidades

O Coro Infantil da Casa da Música não pretende ser apenas um coletivo de vozes coralistas. O objetivo de Jorge Prendas era (e é) levar a arte onde ela, por vezes, não chega. Para isso, foram selecionadas escolas básicas que não tivessem qualquer tipo de relação extracurricular com um projeto similar. Mas não bastava oferecer a oportunidade, era também preciso proporcionar condições para que a mesma fosse aproveitada. Jorge Prendas explica que a escolha das escolas foi coordenada com as respetivas câmaras municipais, havendo um pressuposto: que existissem transportes públicos desses locais para a Casa da Música. Assim, todos e todas teriam acesso aos ensaios.

“A ideia não é formar cantores, mas sim fazer com que cresçam interessados pela música”, salienta o coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música. Muitos têm a oportunidade de formação e de pisar um palco que, de outra forma, não teriam e, por isso, o Coro Infantil estende-se para lá do coletivo de vozes e formadores, sendo, fundamentalmente, um projeto social.

Nos camarins afinaram-se os detalhes. Rita (à direita) preparava o cabelo para fazer uma trança

Mas Jorge Prendas realça que a música não faz milagres. “Não se pense que, por si só, os projetos musicais resolvem os problemas do ensino”, esses estão assentes em falhas estruturais que é preciso resolver. Do Coro Infantil, quer do principal, quer dos locais de cada escola, o coordenador pretende apenas que se formem “ouvidos críticos”, ou seja, que os jovens que passam pelas instruções de Raquel, Jonas e Joana aprendam a escutar e avaliar a qualidade musical de uma peça. “Que não aceitem, sem pensar, tudo o que o mercado lhes coloca nos ouvidos”, resume.

Dos coralistas às famílias

O Coro permite também levar para a nobre Sala Suggia quem, para lá dos mais pequenos, nunca pensou presenciar um espetáculo musical. “Costuma-se falar em danos colaterais, aqui falo em benefícios colaterais. Não é só o jovem que fica ligado à música, mas também a família”, expõe Jorge Prendas. Carolina é um desses casos. Nunca antes ela ou a família tinham assistido a um concerto de música clássica. Não havia sequer uma ligação próxima à arte, que fizesse a jovem de 11 anos pedir aos pais para que a inscrevessem nas aulas de saxofone, que agora frequenta. É uma história semelhante a outros colegas, que levam as famílias, pela primeira vez, à Casa da Música. Já no dia do espetáculo, reunidos na entrada principal, estão os espectadores (também eles ansiosos). Trocam-se comentários e opiniões sobre o espaço. “Onde é que nos podemos sentar?”, questionam-se. Sente-se o nervosismo. Fazem-se figas para que tudo corra pelo melhor. Aos filhos, netos ou sobrinhos.

Familiares e amigos dos coralistas assistiram às peças apresentadas na Sala Suggia

António, inconfundível por andar sempre com o tablet nas mãos, sentiu-se “tocado” pela música muito cedo. A menos de uma hora de subir ao palco, come um pão e bebe um sumo de laranja com os olhos colados no pequeno ecrã que passa música clássica húngara. É questionado se a melodia é uma das que vai cantar dali a poucos instantes. “Não”, responde certeiro, “só estou a ouvir porque gosto”. Diz que acalma os nervos. Adquiriu o gosto pela música clássica, em várias línguas, com os pais que, junto com a irmã, estiveram presentes no grande dia, para testemunhar a sua estreia. O resto da família, detalha António, vive no Brasil e não pôde aparecer. Outra voz apressa-se a continuar a conversa: “Para me ver vêm os meus pais, os meus irmãos, a tia, a avó, o primo”. “Só falta o cão”, brinca um outro colega.

No camarim dos rapazes a ansiedade é subtil. Come-se o lanche, bebe-se muita água, trocam-se algumas frases de apoio e começa-se a vestir a indumentária: camisa e calças azuis e sapatos pretos. Há ainda o pequeno pin que identifica o grupo coral. Na sala ao lado, no camarim das raparigas, o ambiente é diferente. As conversas em tom elevado e os risos fazem-se ouvir fora de portas. É preciso preparar os penteados que cada uma planeou com todo o cuidado, ajeitar o laço das camisas e o das calças, as sabrinas pretas.

David (à direita) atento as últimas instruções. É um dos coralistas mais antigos, estando no grupo desde o início

Todos vestidos. É o momento de passar para o backstage. Um dos violinistas treina os últimos acordes, deixando uma harmonia de fundo abafada pela azáfama dos últimos momentos. Entre corridas, conversa e treinos finais, surge a maestrina. Espalha-se um espanto generalizado. “Estás tão bonita.” “Que lindo vestido.” “Esse penteado está incrível.” Os elogios rasgados são para Raquel, que acompanha semanalmente os jovens. Depressa os nervos fazem com que o tema de conversa mude. Entre sorrisos envergonhados, fala-se de amigos em comum, da escola, de namoricos – tudo menos do espetáculo, que já foi visto e revisto vezes suficientes. David, de 13 anos, nas andanças do coro desde o início, ensina todos os pormenores aos colegas. Estão de volta dos ecrãs de informação, que indicam o momento preciso em que devem entrar. “Está na hora.” O silêncio torna-se sepulcral. Alinham-se os coralistas. Abrem-se as portas do palco. E aqui vão eles, depois de dois anos de paragem.

O alinhamento corre sem sobressalto. Primeiro as composições próprias, depois o coro mais antiga atua junto com o Ensemble de Cordas e, de seguida, a obra “Five hebrew songs”, dedicada ao tema da Casa da Música em 2022: o Amor. Antes de encerrar, voltam a palco os coralistas estreantes. Canta-se, por último, “Tutira Mai”, uma canção em língua maori. É com a letra de apelo à paz e à união que as 38 vozes se despedem. Por agora. Desejando que mais nenhum sobressalto os obrigue a parar os ensaios.

O Coro Infantil foi acompanhado pelo Ensemble de Cordas da Escola Profissional de Música de Espinho

Os nervos acabaram-se quando a música terminou. Depois? Depois desfrutaram da ovação em pé. Dedicada à arte, que nasceu na escola, cresceu na Casa da Música e subiu ao palco da Sala Suggia. “Voltamos no próximo ano.”