Rui Cardoso Martins

Nas promoções


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Um dos estudos a fazer um dia, com visão antropológica e alguma ciência, são os desacatos nos supermercados.

Um dia, há anos, era Dia do Trabalhador, 1º de Maio, quando entrei num Pingo Doce para comprar uma galinha com miúdos e um honesto ramo de salsa. O resto – arroz carolino, cebola, limão, sal – tinha em casa. Mas cheguei a casa sem galinha ou salsa, aliás sem nada e, portanto, sem canja para uma gripe pré-estival. Sem os caldos, eu tivera pelo menos as cautelas, porque o supermercado parecera-me tão cheio, tão louco de carros de compras às voltas como em pista dos carrinhos de choque das feiras, que voltei a sair, intrigado. À noite, vi na televisão que tinham inventado uma tal promoção – com cem euros de gastos ofereciam não sei quantas vantagens inacreditáveis (dariam mais cem, o dobro?) – que metade da população portuguesa correu ao Pingo Doce com tanta urgência como se fugisse da morte. A TV mostrava-nos duplas de mulheres a pegarem-se pelo último pacote de carne, homens ao molho por mercearias já esfarrapadas, crianças em cima de carros cheios, com os pés nas frutas e o rabo nos fiambres, a pedirem socorro. Berros, insultos, traumas inesquecíveis, sindicatos indignados, igreja chocada, políticos em sermão e sociólogos em acção. Isto é, algum inteligente se lembrara de criar um inferno capitalista com a destruição do dia anual do descanso dos assalariados.

Lembrei-me deste dia triste ao assistir ao julgamento de Ivo, o rapaz que estava no banco dos réus a respirar saúde e calma. Era a mulher que testemunhava quando entrei, nervosa a recordar o dia em que foi ao Pingo Doce comprar frango (assado).

– Queixa do segurança não fiz. Mas arrependi-me de não o ter feito. Fui empurrada quando tinha acabado de ser operada à coluna e tive medo, disse a mulher de Ivo.

E mais, disse que o segurança tinha arrastado o marido para fora do estabelecimento, que Ivo tinha tropeçado, que foi agredido no chão com socos, enquanto ela gritava “parem, parem, parem!”. Que antes disso, de facto, Ivo não tinha a máscara no nariz, mas quando o segurança ordenara “mete a máscara!”, este a metera, mas o mais importante, dizia a mulher de Ivo, nuns nervos comemorativos, era que Ivo só se tinha envolvido na discussão porque ela estava a ser empurrada: “Tu não bates na minha mulher!”

A situação beneficiava do factor “loucuras do confinamento, quando há comida para comprar, apesar da pandemia”, mas pouco mais fazia sentido, até que a mulher explicou melhor.

– Estávamos a ser enganados.

Queriam o livro de reclamações e serem ressarcidos do dinheiro cobrado a mais na caixa, enquanto a menina da caixa gritava:

– Vocês têm de olhar para os preços!

A versão da mulher de Ivo não batia certo com a do segurança e a do Ministério Público. Segundo estes, se houve agressão foi a de Ivo, socos e murros. O segurança dera ordem para colocar a máscara na cara e, de facto, arrastara Ivo para fora do supermercado, mas só porque este começara a insultar a caixeira.

Mas é para isso que existem as câmaras de vigilância. Durante a comprida meia hora seguinte vimos, no tribunal, uma das mais aborrecidas médias-metragens de acção do cinema português. Bocejando, tomei notas: passa mulher com saco, o padeiro vai lá fora, um homem (Ivo) chega perto de uma mulher (a esposa) que está na caixa, gesticulam, pessoas telefonam, mulher bate num livro vermelho (livro de reclamações) como se o quisesse esmurrar, segurança sai do seu balcão e aponta a máscara que está no pescoço de Ivo, que o afasta com força mas põe a máscara no nariz. Segurança e Ivo rodopiam como num bailado e saem de campo para a porta da rua, a mulher de Ivo sai atrás deles de braços no ar, como se um touro atacasse uma criancinha na arena.

E pronto, foi isto que se viu, sem som. A acusação pediu a condenação, a defesa a absolvição, porque não se vê ninguém a bater em ninguém, empurrões não contam bem como agressão.

– Afinal, o que é que se passou?, perguntei a Ivo, à saída.

– Foi nas promoções, respondeu ele, nas calmas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)