Na selva de cimento, há quem trabalhe no céu

São cada vez menos os que chegam ao alpinismo industrial provenientes do desporto. O sentimento de aventura, esse, é comum a todos. Não há andaimes ou estruturas visualmente ruidosas. Vivem nas alturas e fazem de tudo - pintam, lavam, montam. Sentem-se mais seguros e recebem melhores salários. Bem-vindos à construção civil do século XXI.

Mãos suadas, corpo a tremer, coração acelerado. Dima Anishchik não conhece a reação típica de quem sobe, pela primeira vez, às alturas. A infância, adolescência e juventude foram passadas, tantas vezes, a dezenas de metros do chão. Mas não aqui. Estávamos nos anos 1990 e Dima percorria todo e qualquer canto da Bielorrússia, terra natal, onde pudesse praticar escalada e alpinismo. Para ele, o hábito fez-se profissão e, chegado a Portugal, as alturas não o largaram – tornou-se alpinista industrial.

Alpinismo industrial. “Trabalhos em altura através de técnicas de acesso por cordas”, descreve assim o site da empresa Workalp, na qual Dima é sócio e responsável. Montar vidros que pesam meia tonelada, reabilitar edifícios com dezenas de metros de altura ou subir a eólicas são alguns dos trabalhos que o bielorrusso, de 39 anos, tem feito. “Os trabalhos de construção que normalmente nos parecem impossíveis de terem sido realizados, o mais provável é terem nascido com recurso a trabalhadores como eu e como tantos outros alpinistas industriais.”

Para Dima, não houve um período de habituação. Passou das paredes interiores e exteriores e das montanhas do centro da Europa para os edifícios portugueses, não sem antes passar, por cá, pela Natureza. Já percorreu o país que o acolhe há mais de duas décadas para continuar a paixão da escalada desportiva. Não sabe explicar o porquê do alpinismo. “Foi natural.” Mas sabe dizer com certeza que o que mais o cativa é a adrenalina, a emoção. E tenta passá-la para a equipa de quase 20 funcionários que hoje gere. “Vamos muitas vezes, todos juntos, fazer canyoning, rapel e outras atividades radicais.”

Chegou a Portugal em 2001, para a construção civil, e, passados três anos, respondeu a um anúncio de “trabalho em altura”. A palavra “altura” era-lhe familiar e, por isso, não duvidou. O primeiro trabalho foi, de imediato, num edifício com dezenas de andares e a adrenalina conquistou-o. “Foi como subir uma das tantas paredes que já fiz.”

Mostrando que é uma área na qual se consegue progredir, Dima recorda que começou como funcionário e, em 2010, decidiu abrir a própria empresa, sediada em Coimbra. Mas os serviços que presta espalham-se um pouco por todo o país. Hoje está em Coruche, Santarém. Está a liderar a substituição da cobertura de uma fábrica, uma das tarefas mais básicas, já que, aqui, a altura não é tão desafiante como está habituado.

Dima Anishchik (em baixo) é sócio da Workalp, empresa de alpinismo industrial sediada em Coimbra. Na foto, está acompanhado dos funcionários Vasili Karpau e Welton Ferreira
(Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens)

Dima é sócio com o amigo Paulo Almeida, também ele com origem no alpinismo desportivo. Mas, apesar de a passagem do desportivo para o industrial ser regra na administração da Workalp, o bielorrusso garante que, para quem entra agora na profissão, já não é assim. Dos funcionários atualmente contratados, diz, “quase nenhum praticou, ou sequer pratica, escalada como desporto”. “É só uma profissão como outra qualquer.”

E o caso não é único. Cristiano Guedes que o diga. Há seis anos na profissão, nunca praticou escalada desportiva. Nem antes nem depois da profissionalização em alpinismo industrial. “A escalada que faço no horário de trabalho já é suficiente”, afirma o gaiense de 30 anos. Mas foi o gosto pelo radical e pela adrenalina que o chamou para arriscar na profissão. O sogro já trabalhava na área e, à procura de algo melhor, decidiu tentar.

A primeira subida não se esquece

Acabou recentemente uma semana de trabalho no porto de Leixões. Foram horas e dias no topo dos pórticos, a reparar a estrutura. Agora, seguiu para um trabalho que considera mais fácil. “Estamos num prédio, que não é assim tão alto, a pintar a fachada. É um trabalho menos puxado.” Mas os trabalhos que mais ficam na memória, esses, estão associados ao nervosismo. Principalmente ao nervosismo da primeira vez, já que a recordação da primeira subida está bem vivida na sua cabeça.

Estádio do Dragão, Porto. Coloca o arnês. Passa as cordas. Duas (ao contrário do desporto, onde só se utiliza uma). Tudo instalado, é altura de subir. Foi já em cima de um dos arcos do estádio que Cristiano Guedes se deu conta de onde estava. Nunca tinha visto um campo de futebol daquela perspetiva. “E é uma boa experiência.” O suor nas mãos e a sensação de vertigem, ainda assim, não se ficaram por muito tempo. “Poucos minutos depois estava a trabalhar normalmente.”

E apesar de na história de Cristiano não existirem montanhas, paredes de escalada ou recordes de alpinismo, a nível profissional, tem muito para contar. Já trabalhou no topo de torres de controlo de edifícios de vários aeroportos, já montou publicidade a muitos metros de altura, já instalou redes a uma altura que não é à prova das vertigens de qualquer um.

Mas, além do primeiro, o trabalho que mais o marcou foi o recorde pessoal de altura: 177 metros na Torre Altice, no Monte da Virgem, em Vila Nova de Gaia. Registados no Instagram. Já que Cristiano Guedes faz da profissão também um hobby e partilha frequentemente fotografias dos mais impressionantes locais de trabalho por onde passa. Aí, o escritório não são mesas, cadeiras e pessoas que conversam de fundo. Para o gaiense, o dia a dia é passado a apreciar vistas que têm um denominador comum: um horizonte a uns bons metros de altura de onde se encontra.

Ao contrário do que é comum, em que se procura aliar bons profissionais na área da construção, reparação ou pintura à subida em altura, Cristiano Guedes escalou primeiro e aprendeu a técnica depois. Nunca tinha trabalhado na área da construção civil. Mas a regra é, quase sempre, essa. E Fábio Sequeira é um desses exemplos.

Cristiano Guedes (na foto, à esquerda), de Vila Nova de Gaia, trabalha na área do alpinismo industrial desde 2016. Nunca praticou escalada, montanhismo ou alpinismo desportivo
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Até aos 30 anos, o lisboeta podia ser visto pela capital a subir a um dos tantos andaimes que diariamente “invadem” as ruas. Subia escadas, descia escadas, sem cordas de proteção, a carregar peso. Mas, em 2013, um amigo falou-lhe de uma técnica mais segura e mais leve. Estas são, aliás, duas das vantagens apontadas para a preferência por trabalhos com alpinismo industrial. Voltemos a Dima Anishchik.

O responsável da empresa Workalp apressa-se a destacar o que, para ele, é o principal ponto forte da técnica: eliminar ruído visual. “Estamos habituados a ver cidades repletas de andaimes que ocupam espaço e tapam a estética dos edifícios, por vezes, durante meses.” O alpinismo industrial apresenta uma solução. Não são necessárias autorizações de colocação, não se ocupa espaço, não se polui visualmente as cidades. Por consequência, chega o fator preço. “É muito mais barato contratar dois homens pendurados em cordas para pintar uma fachada, independentemente da altura, do que pagar funcionários, pagar taxas de autorização, pagar o andaime”, explica Dima Anishchik. Além disso, segundo o alpinista industrial, é mais seguro para todos – trabalhadores e transeuntes. Dima Anishchik não recorda um único acidente que tenha ocorrido em território nacional com a técnica de acesso por cordas. “Vemos tantos trabalhadores em andaimes que não respeitam as normas de segurança, sem cordas, às vezes sem capacete.” No alpinismo industrial não há por onde fugir às regras. E tudo tem corrido bem.

Mão de obra de qualidade

O profissionalismo de Fábio Sequeira nos trabalhos que fazia valeu-lhe uma entrada rápida para o alpinismo industrial. Era preciso quem, mais do que escalar, fosse perfeccionista na construção civil. E ele era (e é). O primeiro trabalho foi a lavagem do exterior do Hospital da Luz, em Lisboa. Mas o mais alto desafio profissional aconteceu na manutenção de um prédio com 17 andares. “Quando se está lá em cima, se pararmos para pensar onde estamos, a sensação é incrível.”

Apesar de confidenciar que continua na área pela adrenalina, com que sempre pautou a sua vida, confessa também que é “exaustivo”. “Como qualquer trabalho em construção civil, não é por estarmos pendurados que custa menos”, relata o lisboeta de 40 anos. Já antes de trabalhar entre cordas e arneses, Fábio Sequeira praticava escalada amadora. Mas nunca pensou subir tão alto como hoje faz. E pretende continuar a fazer.

Comparativamente ao salário que se ganha na construção civil, afirma Fábio, “o trabalho em alpinismo é melhor remunerado, permite dar uma vida melhor aos filhos”. E, além de um ordenado melhor, a verdade é que a técnica tem conquistado cada vez mais adeptos, prevendo-se um futuro estável.

Sobre o sucesso da técnica, Alexandre Lopes, responsável da empresa Trabalhos Verticais, sediada em Matosinhos, é breve na explicação: “Até março não tenho como aceitar novos trabalhos”. A fama do método de trabalho é tal que as principais empresas têm as agendas fechadas, pelo menos, até ao final do ano. Quem entrar hoje na profissão, assegura o alpinista industrial, tem trabalho garantido. Mas nem sempre foi assim.

(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Quando Alexandre Lopes e o irmão se lançaram às alturas e abriram a empresa, no início do século, “era difícil entrar em obras”. “Eram todos muito céticos sobre as vantagens desta forma de trabalhar.” Mas a experiência provou que Alexandre fizera a escolha certa. Vindo do montanhismo desportivo e com uma loja de carpintaria aberta, o portuense juntou a profissão ao desporto. Hoje, tal como Dima Anishchik, diz que é raro. “Cada vez é mais difícil arranjar alguém que venha da área da escalada porque já têm mais formação e têm outras perspetivas.”

Para contrariar a falta de profissionais com experiência em alpinismo, a Trabalhos Verticais oferece formação. “Aliciamos quem perceber de construção civil a que venha para esta área através do ensino da técnica.” E, depois, são poucos os que abandonam. A maioria dos trabalhadores chefiados por Alexandre não pensa, tão cedo, em sair. “É seguro, é bem remunerado e é cativante.”

No entanto, apesar de todas as vantagens, a falta de mão de obra tem-se feito sentir, aliás como acontece em todas as áreas da construção civil. “Aqui só temos um fator a dificultar ainda mais a busca por interessados em trabalhar – as pessoas podem assustar-se por ser em altura.”

Profissionalizar para melhorar

Rodrigo Ribeiro considera que o problema reside na falta de legislação e acreditação certificada na área em Portugal. Veio do Brasil, tem 42 anos e é o dono da Altdoor, empresa agora sediada em Guimarães. Na sua terra natal, frisa, a profissão é reconhecida. “Há legislação própria para o alpinismo industrial, há formação obrigatória, há entidades creditadas para o ensino.” Por cá, denuncia, não há nada disso. A legislação portuguesa detalha apenas as normas dos equipamentos obrigatórios a usar. O tipo de cordas, o tipo de arneses, o tipo de capacete, entre tantos outros materiais.

“Mas o que se faz em Portugal é ensinar o básico sobre as cordas e não ensinar a trabalhar”, o que, acrescenta Rodrigo Ribeiro, não facilita na padronização da profissão. O empresário e alpinista industrial sugere que haja uma qualificação específica obrigatória, acreditando que isso chamaria mais gente. “Muitos ou não conhecem esta técnica ou não sabem sequer como chegar a ela. Não há informação.”

Um dos benefícios que Rodrigo vê na profissão é não trabalhar sozinho. Sobe-se sempre na companhia de um colega e, por isso, os dias vão passando mais facilmente. É com um dos seus funcionários que hoje sobe a um prédio em Famalicão. De baixo, destacam-se dois pontos amarelos garridos no meio de um edifício bege. O trabalho por aqui não se alongará – é apenas de manutenção.

A empresa de Rodrigo Ribeiro, a Altdoor, nasceu no Brasil, tendo começado a operar em Portugal em 2020. Está atualmente sediada em Guimarães
(Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Quando Rodrigo Ribeiro não está pendurado em cordas, agora, na maioria das vezes, a supervisionar ou a dar apoio de formação, está a gerir a Altdoor, e, realça, há dois tipos de currículo que lhe chegam. “Ou são trabalhadores que vêm do Brasil, habituados a um salário maior por a profissão lá ser qualificada; ou não têm qualquer experiência.”

“Experiência” é a palavra que, provavelmente, melhor definirá Rodrigo. Foi aos 15 anos que este brasileiro, natural do Paraná, descobriu o gosto pelas alturas. Era escuteiro e fez uma atividade de escalada. Nunca mais parou. “Lá, era um escalador dedicado, não havia um único dia que não treinasse.” Percorreu a terra natal e grande parte do Brasil, a subir paredes, montanhas, interiores e exteriores.

Foi ainda na juventude, em 1999, que viu um anúncio de jornal que anunciava a necessidade de contratar um alpinista “para limpeza de barracão”. À época, a técnica não estava profissionalizada, por isso quem trabalhava eram alpinistas como Rodrigo. Tentou a sorte e nunca mais largou a profissão. A empresa que hoje, garante, está numa fase de sucesso, começou em 2013 no Brasil. Mudou-se para Portugal em 2020. E nem a pandemia comprometeu o trabalho.

Mas, apesar da grande quantidade e da exigência do trabalho, Rodrigo Ribeiro tenta que o lado desportivo não se esmoreça. Por Portugal, o local que mais gosta de escalar é a Serra da Agra, no Alto Minho. Mas também já andou nas alturas, por desporto, em Lisboa e em Coimbra.

Também a escalar por terras portuguesas vai estando Dima Anishchik. “Não é o mesmo que escalar na Bielorrússia, mas gosto muito de subir à Natureza por cá.” Sublinha que a profissão se pode ir, mas o alpinismo desportivo, esse, será até que o corpo não o permita mais.