Joel Neto

Música para bebés


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Mas ao avultar-se a madrugada, quando as corujas dão por si às cabeçadas e os padeiros consultam o relógio, temos o nosso momento. Não são já os resumos do Mundial, que repetimos ao longo do serão, ele aninhado no meu colo, a Colette equilibrando-se sobre o que resta de espaço nas minhas pernas. Não são as fraldas que vou mudando dia fora, enquanto enceno histórias tontas em que o choro desvairado dele é o protesto de um sindicalista irlandês, o lamento de uma amante traída, o entusiasmo da vizinha da vítima num depoimento à CMTV. Nem é (naturalmente) nenhum dos outros muitos momentos em que se ocupa dele a Marta, mãe pragmática, terna e diligente: é o biberão da madrugada, para que ela foi extraindo leite ao longo do dia – e é nosso, porque ela precisa de descansar e nós de um momento.

De início tinha o seu quê de desporto radical. Primeiro porque eu começava pela fralda, já sem forças para grandes teatros, e o berreiro era tanto que o Gauguin, de sentinela no corredor, via-me sair à procura de soluções e baixava os olhos: “Mas o que é vocês andam a fazer a esse bebé?” Depois porque o próprio Artur – Deus o guarde – não nasceu exactamente epicurista, com palato para a estrutura do terroir ou o equilíbrio dos taninos: mais depressa agarrava no biberão com ambas as mãos, antes mesmo de saber usar os dedos, e prometia chamar o pelotão de fuzilamento para o primeiro que tentasse interrompê-lo. Engasgava-se tantas vezes, e com tal vigor, que era todo um pânico de recapitulação das técnicas de desembargo – pô-lo ao alto, deitá-lo no antebraço, bater-lhe cinco vezes na zona do iliocostal, rezar três Ave Marias – até, enfim, se acabar o leite e soar o arroto.

Mas, com o passar dos dias, aprendi a ver a gula como uma alternativa relativamente barata ao teste de paternidade para que a beleza dele me podia impelir. Passei a trocar a fralda no fim, sobretudo nos dias de maior alarme. E ele próprio aprendeu a respirar enquanto come, em pausas exasperadas mas decididas.

E agora o biberão da madrugada é o ponto alto do meu dia, um instante para que acordo numa vertigem. No fim, e se tenho dificuldade em fazê-lo voltar a dormir, acontece-me ler-lhe da incrível biblioteca que o Nuno e o Filipe lhe prepararam. Mas, na maior parte dos dias, mostro-lhe música. Às vezes sou sistemático: Zeca, Miles e os Beatles; Chico, John Barry e Dylan; Carlos do Carmo, Lévon Minassian e Ms. Simone (e por aí fora). Outras vou mais ao acaso. Estando em onda dengosa, ponho o Teddy Pendergrass, ou o Harold Melvin, ou os The O’Jays, e, se a Marta se levanta para ir ao WC e pára no corredor a rir, rechaço: “Voltou a pedir os discos da Philadelphia, o que queres?”. Sentindo-nos mais eruditos, escolho um concerto para clarinete – daqueles que o Spotify diz ser próprio “para bebés”, longe de mim vir agora sugerir que o meu filho é muito culto -, e ele fica a olhar para o telemóvel, fascinado com aquela caixinha de luzes e sons: “Olha, Mozart”.

Ontem, ao sair do quarto dele, deparei como sempre com o Gauguin. Sorriu-me: “Ouve o miúdo, que ele tem bom gosto”, e voltou para a sua enxerga. A Colette sentiu-o de regresso e tornou a enrolar-se nele. Pouco depois, dormíamos todos.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)