Mike Scott: “Lembro-me de um público barulhento e selvagem, só espero sentir o mesmo desta vez”

Os The Waterboys estão de regresso a Portugal. O último espetáculo europeu da banda antes da pandemia foi em Lisboa, coisa que nunca vão esquecer. Desta vez, aterram no Porto e trazem um novo álbum, carregado de batidas, além dos hinos dos anos 1980 de que são donos. Mike Scott não parou nos últimos tempos, discos atrás de discos, e há uma certeza: a longevidade musical já lhe permite arriscar novos caminhos sem preconceitos.

Se pudéssemos rebobinar no tempo, como se a vida funcionasse tal e qual um disco, até aos anos áureos da década de 1980 dos The Waterboys, talvez os maiores fãs da época hoje já não lhes reconhecessem as sonoridades épicas e de música celta dos autênticos hinos que os projetaram para a ribalta. A banda criada pelo resistente Mike Scott – o único membro da formação original que se mantém e que há muito é a imagem do grupo – “cresceu”. E embora ainda vista a descrição de banda folk rock irlandesa-escocesa, soa muito mais contemporânea atualmente. Como disse uma vez Mike Scott, são uma “banda irlandesa-escocesa-inglesa-americana” e tantos mais cantos do Mundo que caibam nela.

Aos 63 anos, o ícone escocês tem pouco medo de mudar, de arriscar, numa espécie de sabedoria que a idade não deixaria escapar. Continua a criar música, e tanta. Nos últimos anos não parou. É como se não tivesse perdido a alta rotação, ao fim de quase quatro décadas de The Waterboys, que até podiam ter definhado, mas não: acabaram de lançar um novo álbum, com mais ritmos de ares eletrónicos do que nunca, e são um dos cabeças de cartaz do JN North Music Festival.

“Gosto sempre de voltar a Portugal. Grandes fãs, grandes espaços, grandes cidades. O nosso último espetáculo europeu antes da pandemia foi no Campo Pequeno, em Lisboa. Foi maravilhoso e nunca vou esquecer”, relata Mike Scott à “Notícias Magazine”. No próximo sábado, vão estar na Alfândega do Porto, não é uma estreia a norte, já passaram por Vilar de Mouros ou Vila Nova de Gaia, e o músico parece guardar uma memória nítida. “Lembro-me de um público barulhento e selvagem. Só espero sentir o mesmo desta vez.” Apesar das rugas de história cravadas na pele e de uma voz que se aproxima cada vez mais ao estilo de Bob Dylan, de trejeitos mais teatrais, há coisas que não mudam: os cabelos a bater nos ombros, a pele lívida, os olhos azuis, o chapéu na cabeça.

Dois anos de pandemia: mais álbuns e novos caminhos

A pandemia roubou-lhe os palcos, mas Mike Scott, que hoje vive em Dublin, na Irlanda, não se encostou à sombra de uma carreira provada e quis continuar a enviar música para o Mundo. Traduz rápido os últimos dois anos: “Muito tempo com a família, muito trabalho musical em casa – escrita e gravação. Felizmente, tenho um estúdio em casa e tenho sempre ideias para trabalhar. Há sempre alguma coisa a cozinhar. O trabalho ajudou-me a manter a sanidade mental.” A prova maior é que fez dois novos discos, trabalhando com outros músicos por e-mail: “Good luck, seeker” saiu em agosto de 2020 e foi o culminar de uma trilogia de álbuns “deluxe” que começara em 2017 e o último, acabadinho de sair, “All souls hill”. Além de duas “box sets”, que é como quem diz compilações que arrumam clássicos de há décadas e que contam uma história que o cantor não quer deixar ganhar pó. Uma delas, “The magnificent seven” (cinco CDs, um DVD e um livro) foi lançada no ano passado. A outra há de sair, diz ele, em 2023 ou 2024.

E talvez tenha sido do confinamento forçado – ou se calhar não – que nasceu um álbum que desenha novos caminhos, que aponta novas direções. Ou melhor, que as cimenta. Os últimos discos já traziam uma mistura eclética de ritmos, mas “All souls hill”, coproduzido com o produtor Simon Dine, é o apogeu da mudança. São nove faixas carregadas de melodias, que viajam desde o folk ao rock, e parecem pender para a eletrónica. Algumas, garante o vocalista, vão entrar no concerto no Porto.

Ao fim de quase 40 anos de The Waterboys, Mike Scott admite que sempre imaginou que a banda ia estar constantemente a mudar, não só musicalmente, mas também na formação, tal e qual aconteceu

“O Simon e eu trabalhámos juntos, pela primeira vez, em 2018 na música “And there’s love” do álbum “Where the action is”. Adoro os instrumentais que ele cria. Não acho que sejam eletrónicos de todo – são orgânicos e psicadélicos. E as batidas são funk e rock. Também há bateristas em quase todas as músicas, não são só batidas. Gosto sempre de manter o toque humano e a dinâmica de baterias reais”, explica Mike Scott, a quem a longevidade musical já permite despir-se de preconceitos e atirar-se de cabeça. “Este álbum foi um acaso, que veio do nada, quando o Simon me enviou um conjunto de instrumentais para eu trabalhar. Não tinha nenhum plano ou preconceção do que seria. Simplesmente aconteceu. Um belo e maravilhoso acaso.”

Hinos da banda de um homem só

A verdade é que as batidas que entram nos novos trabalhos se vão distanciando dos The Waterboys que apareceram no início dos anos 1980, na Escócia, quando o indie-rock entrava na cena musical mundial. Foi em 1985 que explodiram com o álbum “This is the sea”, com sons típicos de grandes orquestras. Logo depois, em 1988, chegava o “Fisherman’s blues”, mais voltado para o folk acústico, sem nunca esquecer a guitarra e os ares de rock que agarrou fãs por todo o lado. “Room to roam”, em 1990, também chegou aos tops. Os mais mediáticos discos.

São donos de canções que são marcos incontestáveis dos anos 1980 e que nenhuma noite temática dedicada à década falha, êxitos cantados em uníssono como “The whole of the Moon”, “Fisherman’s blues”, “How long will I love you” ou “A girl called Johnny”, de entre mais de uma dezena de álbuns. Não é acaso tantos outros históricos artistas, como Rod Stewart, Prince, Fiona Apple, Tom Jones e Bono já os terem adaptado. “Adoro quando outros artistas tocam canções dos The Waterboys e sinto-me verdadeiramente honrado por grandes cantores terem cantado as nossas músicas nos últimos anos, além de grupos como The Killers, War on Drugs, Dawes and Bleachers. Adoro especialmente quando eles mudam as canções e as tornam suas, tal como acontece na fantástica versão de ‘Fisherman’s blues’ de Dawes ou na versão de ‘This is the sea’ de Tom Jones.”

Muito mudou desde as músicas mais consagradas (a banda ainda se separou pelo caminho, Mike Scott testou percurso a solo nos anos 1990, percebeu rápido que prefere estar em grupo) e desde que o músico fez renascer os The Waterboys, em 2000. Passou a ser banda de um homem só, de Mike Scott, e de uma série de artistas que foram rodando ao longo dos anos, ao ritmo da evolução. A estrela maior viu sair pesos-pesados, como recentemente o violinista de longa data Steve Wickham – e o violino era já ícone -, ou o teclista Karl Wallinger, que marcou muita da sonoridade dos primórdios do grupo. Mas Scott nunca parou. A música está-lhe entranhada nos genes e a vida pode explicá-lo bem. Lembra até hoje dois presentes que o pai, que abandonou a família em Edimburgo, tinha ele dez anos, lhe deu: a primeira guitarra e uma cópia de “Let it bleed” dos The Rolling Stones.

À pergunta: os The Waterboys são sinónimo de Mike Scott? O músico responde que não, que são muito maiores do que ele. “Sempre imaginei que os The Waterboys iam estar constantemente a mudar, não só musicalmente, mas também na formação. E assim foi.” No Porto, vai subir ao palco ao lado do teclista Brother Paul, que está na banda desde 2013, do teclista e guitarrista James Hallawell (esteve com Scott nos anos 1990, entre 2010 e 2013 e acaba de voltar), o baixista Aongus Ralston e o baterista Eamon Ferris. “São todos brilhantes.” É bom augúrio para um concerto pós-pandemia, que será um inevitável e saudoso regresso aos hinos de outras décadas.