Rui Cardoso Martins

Meus filhinhos, minha Covid

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Hoje estou a pensar – imagino que todos pensem – nas maneiras que cada um terá para recordar os dois anos de pandemia mundial de covid, que em Portugal agora se desvanece (para já?). Lembrar-me-ei do quê? Do dia em que confirmei estar doente, é 20 de Janeiro de 2021 e acabam de morrer 303 pessoas, o pico dos picos mortais e ainda não há vacinas, serei eu o 304, como está o oxigénio, deverei sair se isto piorar de súbito, mas para onde, se vai esta nave cheia de moribundos e de mortos sufocados? Ou pensarei na tarde, rodeado de carrinhos de supermercado feitos tanques de combate, em que quis levar comida para três meses, pelos meus filhos, se a civilização e o Mundo se partirem.

Não posso sair de casa, não nos deixam, até quando não se sabe, voltaremos a sair, caberá ainda um beijo, um abraço, um passou-bem na mala futura da Humanidade? Sim, haverá, há, sabemos agora, mas é tão fácil esquecer como lembrar a paranóia.

O que diremos disto tudo aos nossos netos?

Vi Luís no tribunal esta semana. Chegou com as mãos algemadas, tatuadas com coisas estranhas, pareciam insectos cinzentos e azuis a saírem-lhe das mangas. Estava, por assim dizer, reconfinado num dia-a-dia de prisão e, antes disso, criminalmente ligado ao instante em que tentou furar o confinamento na ponte 25 de Abril. Luís escutava o polícia que o prendeu nessa noite.

– Ele foi fiscalizado por mim. Disse que tinha carta e não tinha. Foi uma fiscalização covid.

– O que é que ele estava a fazer, para onde ia?

– O destino, não sei. Foi naquele parque à direita, antes de sair da ponte 25 de Abril.

Outubro de 2020, quando não se podia circular entre concelhos sem autorização especial, para evitar a propagação do vírus. Luís não tinha autorização, nem carta de condução, sequer. A advogada de Luís era nova, o anterior pedira escusa, não sabemos porquê. Luís tem um longo cadastro, cumpre um ano e nove meses na Penitenciária de Lisboa. Luís estivera calado.

– Ele agora deseja falar, disse a advogada.

– Então diga lá, começou a juíza. Isto é verdade?

– Estou arrependido do que fiz. Estou a trabalhar na cadeia, a lutar pela minha liberdade condicional. Só quero voltar para junto da minha esposa e para junto os meus filhos.

A juíza passou os olhos pela advogada, à sua esquerda, e pela procuradora, à direita.

– Creio que podemos considerar isto como confissão integral e sem reservas?

– Sim, responderam as duas.

A juíza, suavemente, entrou noutro patamar:

– Disse “quero ir para junto dos meus filhos”. Quantos tem?

– Sete.

Houve uma suspensão. Como é possível, é tão novo, tão… por assim dizer… jovem e tatuado, uma escova de cabelos de futebolista no alto da cabeça!

– Que idades têm os seus filhos?

– Tenho dois de sete meses. A mais velha tem 14 anos.

Claro que com ele só vivem três. Claro que aos outros não paga pensão de alimentos. Claro que ele está preso e a sua companheira está desempregada.

– O que é que fazia antes de ser preso?

– Fazia entregas ao domicílio.

Era com a mulher. Tinham conta nas plataformas de entrega de comidas e de tudo aquilo que encomendámos pelo telefone, pela Net e nos levaram a casa durante o fecho do Mundo. Não percebi se conduzia sem carta nessa altura. Já a tirou, mas sobraram muitos crimes.

– Em relação aos crimes, disse Luís, já não são mais nada para mim. Já pago por eles. Só quero voltar para a minha esposa e os meus filhos!

A juíza disse que ia decidir nos próximos dias. Os guardas algemaram-lhe as mãos atrás das costas – ele, enervado, perguntou para quê, se ainda ia ter de assinar um papel e sujar os dedos nas almofadas negras das impressões digitais, o guarda respondeu que, quando isso fosse, lhe tirava as algemas para voltar a pôr – e regressou ao confinamento numa cela verdadeira. Que memórias terá um dia para contar aos netos?

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)