Valter Hugo Mãe

Maximalismo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Adoro que me entreguem bilhetinhos, cartas de carinho, pequenos desenhos que façam a pensar em algo significativo, fotografias bizarras, colagens improvisadas até com fotos eróticas ou santinhos. Tudo é matéria de humanidade, de bravura de expressão, de recusa de morte.

Sou uma alma de avidez, sei que me defino por uma carência contínua, porque nada me basta para sempre, quero ver mais e fazer mais qualquer coisa, e acredito que exista muito mais gente para amar, muito mais amigos, outros amigos, outros lugares. A mim, não me convencem as simplificações definitivas. Só simplifico como higiene, para depois voltar a permitir todas as gestações, a exuberância, a imaginação sem fim. Uso a simplicidade mas pressinto como certo descontrolo é mais natural. Pressinto como somos livres na dimensão alarve da curiosidade e do risco.

O mundo normal estabelece alguma austeridade como apanágio de saúde e bem-estar. Os gestos contidos, os compromissos cautelosos, as casas propensas ao vazio como se fossem de ser abandonadas no instante seguinte. Eu, que só sei viver numa casa onde tudo me agrade profundamente e, em certo sentido, me obedeça, tenho horror ao vazio e imito a companhia com livros e discos, com tantos quadros e figuras de Barcelos, os Cristos e os diabos, as cores das paredes e dos tecidos por toda a parte. Tudo é companhia, meia-forma de gente, alteridade, alguém.

E acumulo o que me dão. Adoro que me entreguem bilhetinhos, cartas de carinho, pequenos desenhos que façam a pensar em algo significativo, fotografias bizarras, colagens improvisadas até com fotos eróticas ou santinhos. Tudo é matéria de humanidade, de bravura de expressão, de recusa de morte.

Sou, pois, acometido de grave abandono em salas brancas sem coisa alguma. Ainda que aprecie a cristalina coisa de as habitarmos como fusíveis de uma lâmpada, sinto a tristeza do vazio, a propensa anulação de tudo, como se nós mesmos significássemos o quase intolerável atrito na luz, uma interferência insuportável e obscena.

Sou ao contrário. Gosto de salas onde todos os corpos entrem e se imiscuam como naturais. Disfarçados pela profusão de outros corpos.

Os meus preconceitos dizem-me que almas minimalistas propendem para estar fechadas aos outros e à diferença. São almas que se presumem maturadas, acabadas, como haverão de ser as profundas árvores, quietas e eternamente a fazerem a mesma coisa. Os maximalistas, por outro lado, teatrais, temperamentais, carentes, é claro, são também predispostos a gostar, celebram cada pequena novidade, como os acumuladores, não se bastam e a alegria pode vir de uma insignificância, porque sabem que tudo serve ao somatório e existe uma gratidão até pelo contributo mais humilde.

Sou maximalista. Papéis de parede, estofos de “chinoiseries”, lençóis descasados, louças irregulares, tralhas afectivas. Sento-me num qualquer canto e estou ao meio da minha praça. De que vale uma casa se não for para obrigar a solidão a vergar-se diante da memória de termos estado também, tantas vezes, acompanhados? Colecciono companhias. Às cores e de muitos tamanhos, a minha casa é babélica e mais rica do que o Palácio da Bolsa do Porto. Porque sobretudo o que tenho não se poderia comprar.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)